Psicólogo e investigador, Luís Fernandes viveu entre 1992 e 1993 no Bairro Pinheiro Torres, no Porto, para realizar a tese de doutoramento "O sítio das drogas", uma etnografia dos bairros associados ao consumo e tráfico de estupefacientes.
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Conhece bem sobretudo os bairros da zona ocidental do Porto - além do Pinheiro Torres, a Pasteleira Velha e a Pasteleira Nova e os bairros de Lordelo e Rainha D. Leonor -, e recorda o extinto Aleixo. Defende que as associações de moradores podem ter um papel importante nestas comunidades, mas lembra que nunca foi dada aos habitantes dos bairros uma verdadeira oportunidade para se auto-organizarem.
Que papel pode ter uma associação de moradores na dinâmica de um bairro social?
Pode ter um papel muito importante, e a questão seguinte é por que é que há tão poucas associações de moradores numa cidade como o Porto, que tem um grande conjunto de bairros sociais, à volta de quatro dezenas. Não tenho números, mas apostaria que, na maioria dos bairros não há organizações coletivas de moradores. Aquilo de que estamos a falar é de auto-organização dos moradores, mas os poderes autárquicos nunca trabalharam no sentido de promover respostas de auto-organização local. Sugerem sempre a partir de fora. Não digo que a gestão seja má; pode até ser uma gestão cuidadosa relativamente ao edificado, aos espaços... Não tenho uma visão necessariamente negativa disso. Mas acho que a visão das políticas sociais do Estado nunca foi uma visão que procurasse outorgar aos destinatários da habitação social o poder da sua comunidade. E isto explica por que é que há tão pouca auto-organização nestes bairros.
A auto-organização não foi incentivada?
Não, porque isto implica uma visão política de democracia participativa e relativamente horizontal, que não é o que habitualmente se faz. Não é assim que os poderes políticos olham para estas zonas. O poder político, seja o central sejam os poderes autárquicos, olha para estas zonas como zonas problemáticas onde é preciso fazer determinadas ações para resolver problemas. Podem ser problemas de insucesso escolar, de violência doméstica... Muitas coisas se fizeram, todas certamente muito úteis, mas o que acontece é que, normalmente, olha-se para estas zonas como zonas a intervir a partir de fora. Mesmo quando se instalam profissionais lá dentro, de agências de desenvolvimento local, IPSS ou ONG cuja função é ajudar estes bairros a viver melhor, muitas vezes estas associações têm uma ligação relativamente débil com a envolvência quotidiana e diária dos bairros. Embora os técnicos estejam lá diariamente, estão a executar respostas financiadas pelo Estado ou por programas que até podem ser europeus. Mas é sempre uma perspetiva muito tecnicista, que não chega muito ao quotidiano das pessoas. De outro modo, elas poderiam ter sido ajudadas a auto-organizar-se e a corresponsabilizar-se por aqueles destinos coletivos. Dou um exemplo: quando a comissão de moradores do Bairro do Aleixo tenta ser um interlocutor forte com a Câmara do Porto, quando esta decidiu demolir o bairro, a única coisa que conseguiu do Executivo camarário foi ser permanentemente desqualificada e não ser ouvida. E tanto não foi ouvida, que o bairro demoliu-se contra muitas vozes que não queriam que isso acontecesse. Basta ver como decorreram as operações de realojamento do bairro S. João de Deus, quando foi demolido, e, depois, do Aleixo para se perceber que os moradores não tiveram nenhuma voz relativamente a isto. Eles são vozes que não contam. Portanto, qual é o poder destas associações locais, que existiam tanto no S. João de Deus como no Aleixo? Aquilo que o poder político lhes disse foi: "vocês não contam".
Qual seria o melhor modelo?
A resposta está implícita naquilo que disse. Os poderes políticos autárquicos e os profissionais que vão trabalhar para os projetos comunitários podiam ajudar os setores mais dinâmicos da população, aqueles que querem fazer coisas, a auto-organizar-se; ajudá-los a criar respostas, inclusivamente no interior dos bairros. Um exemplo: em geral, as pessoas que habitam estas zonas são de profissões que podiam intervir no próprio edificado do bairro, como trolhas, carpinteiros, eletricistas, etc. Não se podiam constituir associações locais com os próprios, para trabalhar no interior do bairro sempre que há um problema, por exemplo? Por que é que esta resposta tem de vir de fora ou por que é que se espera não sei quanto tempo que venha alguém mandado pela Câmara para resolver o problema? A meu ver, os profissionais e os políticos tinham de ser agentes catalisadores da criação destas respostas. Porque as pessoas que lá vivem, pelo menos muitas delas, se forem ajudadas, organizam-se. Mas o que acontece é que os bairros mais antigos do Porto têm 70 anos, e há aqui uma história, que é a de gente que aprendeu que não tem voz e que tem de se conformar ao destino que lhe tocou. E quando alguém está permanentemente, de geração para geração, remetido a este papel passivo, é natural que mostre passividade na relação com os agentes externos do bairro. E por isso é que, muitas vezes, os moradores são acusados de não fazerem nada, de serem preguiçosos, de não terem ação, de serem conformistas. Provavelmente, isto são traços que foram induzidos pelo próprio modo como os poderes sempre se relacionaram com os bairros. Há aqui uma espécie de desânimo aprendido; as pessoas aprenderam que não vale a pena. E há um discurso de acusações mútuas: a cidade acusa os bairros de serem lugares com aqueles problemas que sabemos, com o tráfico de droga, e de serem caldos de cultura do crime, e as pessoas dos bairros acusam os poderes políticos de os votarem ao abandono e de só lá irem quando há eleições. Há aqui uma série de aproximações a fazer, e uma delas é os políticos não irem lá só na altura das eleições, por exemplo.
Viveu num bairro do Porto para fazer a tese de doutoramento. Como vê a evolução dos bairros? O que mudou?
Infelizmente, há que constatar que a situação não melhorou, apesar de terem passado mais de 25 anos desde o tempo em que vivi no [bairro] Pinheiro Torres. O índice de desemprego era alto, hoje é maior. Na altura, ainda tínhamos uma escola no interior do Aleixo, mas essa escola primária foi desativada, e hoje já nem Aleixo há. Dizia a Câmara que o bairro ia ser demolido, entre outras coisas, para resolver o problema da droga. Se formos hoje àqueles terrenos, onde estavam as torres, vê-se que afinal a razão não devia ser essa, porque o problema continua. Depois, aumentou o contraste entre as populações pobres destes bairros e a sua envolvente, que é de classe média-alta e, até, gente rica. Hoje, há mais condomínios à volta, há mais gente a viver bem, e os que viviam mal ainda são os mesmos e estão lá na mesma, nas mesmas condições. Portanto, não temos indicadores que digam que houve políticas sociais efetivas para estas zonas. Com uma exceção, que é a resposta ao nível das drogas a partir de 2001, com a lei que despenalizou o uso e permitiu, sobretudo, pôr no terreno equipas de redução de risco e minimização de danos. Temos um conjunto de ONG que fizeram um trabalho extremamente meritório e com resultados à vista. Hoje temos muito menos gente a consumir por via injetável e muito menos incidência de infectocontagiosas, e pudemos canalizar muitos dos indivíduos que estavam na rua para estruturas que os apoiaram e que, em muitos casos, lhes permitiram reorientar as suas vidas. Portanto, a situação das drogas não é tão grave nestes lugares. Tudo o resto diria que permaneceu na mesma.