Diante do jardim do Marquês paira uma aura de mistério sobre os dois edifícios que rematam a Praça, na confluência com a Rua de Latino Coelho, para onde se espreguiça o granítico palacete rosa-pastel que vive imponente e quase no anonimato, se as tímidas placas negras nas duas frentes da propriedade não nos dissessem que estamos perante a Fundação Marques da Silva, o arquiteto que moldou a Baixa do Porto.
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Ao lado, com parte do jardim de permeio, num diálogo estético ambíguo, o traçado da casa-ateliê de José Marques da Silva também não passa despercebido, apesar de lhe ter sido colado um prédio de volumetria desproporcional.
Constituída em 2009, pela Universidade do Porto (UP), a Fundação Instituto Marques da Silva só abriria as portas ao grande público no final de 2020, mas, sem que se adivinhasse, já antes ali se fazia um portentoso trabalho para conseguir acolher acervos de vários arquitetos - de desenhos e documentos escritos até maquetas -, preservá-los, classificá-los e torná-los acessíveis a quem os estuda.
higienização
Pelas mãos de Alexandra Guedes, do departamento de higienização, passa a documentação escrita dos arquivos que vão chegando. Munida de trincha, bisturi, dobradeira e alicate, cuida de cada folha de papel. "Limpamos a camada de pó, tiramos os agrafos, porque com o tempo oxidam e vão danificar a peça, e planificamos, porque há peças que vêm com vincos", explica a técnica, acrescentando que "há peças que vêm muito danificadas, com fungos, e algumas levaram água e têm de ir para a câmara de anoxia, para matar todos os organismos que possam estar na documentação".
Em seguida - continua Alexandra -, "os documentos vão para os colegas do arquivo, e aí identificam e procedem à organização final". E no arquivo está Adriana Martins, a braços com enormes folhas de papel em que estão desenhados alçados de edifícios. "Já vem para aqui higienizado, e é organizado cronologicamente e por obra. Quando chega a esta fase, já há controlo do que existe e pode ser consultado", adianta.
grande investimento
Este esforço de preservação e classificação tem sido o grande investimento da Fundação, aponta a vice-reitora da UP para a Cultura, Fátima Vieira, que destaca a "necessidade de disponibilizar os acervos", fundamentais para o "estudo e produção de conhecimento". E, entre os aposentos do palacete do século XIX e a casa-ateliê de Marques da Silva, esse trabalho está longe de cessar: além dos acervos que estão a ser tratados, estão previstos outros, também fruto de doações de arquitetos portugueses.
É através dos contributos pessoais de vários arquitetos - como Fernando Távora, Alcino Soutinho ou Hestnes Ferreira - que tem crescido o arquivo da Fundação, criado a partir do espólio do próprio Marques da Silva, que, entre outros projetos, tem a assinatura na Estação de S. Bento, no Teatro S. João, nos liceus Alexandre Herculano e Rodrigues de Freitas, no edifício Palladium e nos edifícios na Avenida dos Aliados, cuja configuração original ajudou a traçar. "A cidade do Porto só é assim por causa do Marques da Silva, e queremos vincar sempre este caráter fundacional da sua obra", sublinha Fátima Vieira.
Documentação no jardim
Com o espaço físico a tornar-se pequeno para os acervos que se vão somando, a Fundação vai construir um centro de documentação nos jardins do palacete Lopes Martins, que pertencera à família da esposa de Marques da Silva. O futuro espaço, projetado pelo arquiteto Siza Vieira, ocupará a área onde atualmente está instalado o arquivo, num anexo do palacete. "O trabalho técnico [preservação dos acervos] vai passar para o novo edifício, libertando os outros dois para exposições", adianta a vice-reitora, Fátima Vieira, realçando que passarão a existir "três corpos que vão ser complementares".
Legado de família
A Fundação nasce a partir da doação à Universidade do Porto do legado do casal Maria José Marques da Silva (arquiteta e filha de José Marques da Silva) e David Moreira da Silva, que incluía o acervo do arquiteto que projetou a Estação de S. Bento e deu origem ao Instituto Marques da Silva, criado em meados da década de 1990. A conversão em Fundação dá-se em 2009.
Arquivos unidos
A fusão dos acervos da Fundação e da Faculdade de Arquitetura do Porto, formalizada em abril, permitiu juntar 60 arquivos pessoais de arquitetos portugueses, num total de 290 mil desenhos, 550 maquetas e 114 mil registos fotográficos
Biblioteca
Com 23 mil títulos oriundos dos diversos acervos, a vice-reitora da UP acredita que a Fundação "tem a maior biblioteca especializada do país".