Nas ruas do Porto, veem-se vários lares improvisados. Gente que ficou sem teto e que construiu um abrigo com papelão, madeira e plástico. Muitas vezes, ao lado do luxo.
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Os dias diluem-se nas incontáveis horas de quem não tem um lar para onde voltar. Nas soleiras dos prédios, nos passeios ou debaixo de viadutos de um Porto em transformação e crescimento vivem dezenas de pessoas que ficaram sem teto. "Moram" em casas de papel, muitas vezes lado a lado com o luxo de apartamentos recentes e empreendimentos turísticos que ocuparam o lugar de casas e pensões cujos quartos eram aquilo que conseguiam pagar.
O papel, o cartão, restos de madeira e plástico fazem as vezes de paredes sólidas. José Graça, 65 anos, vive na rua há 30. "Quem é que anda aí?", pergunta, furioso, a correr e a esbracejar com um ferro na mão, quando nos vê a rondar a sua "casa", debaixo de um viaduto no Campo Alegre. "Ai és tu!...", diz o homem, ao reconhecer o fotógrafo. "É que há dias roubaram-me a bicicleta", explica.
Humildemente, convida-nos a entrar no abrigo que é, há quatro anos, um lar. O espaço não é muito. Entre memórias do passado e o presente, Graça, como é conhecido, conta a sua história. Sob um telhado de cartão, levantou paredes de madeira. Partes de outras vidas que foram descartadas e que, para Graça, são o melhor que tem. Liga o rádio a pilhas para ouvir o relato. "É assim que passo muitas noites, a ouvir o rádio", diz.
A memória não o trai e sabe de cor quem o acompanhava, antes de ir para a rua. "Trabalhei muitos anos no "Jornal de Notícias". Fazia parte da fotocomposição e todos gostavam de mim", conta, irrequieto e sorridente.
Foi dispensado no final dos anos oitenta. A partir de então, foi uma espiral sem retorno. Morreram os pais, pagou dívidas de outros e, quando deu conta, não tinha nada. Foi viver para a rua. Mas nunca esqueceu figuras como o "doutor Pina" [Manuel António Pina]. "Ele gostava mesmo muito de mim!".
Entre esperanças e promessas, o tempo passou e Graça ficou. Volvidos 30 anos, a rua continua a ser a sua casa. E a de mais de 500 pessoas, segundo o mais recente diagnóstico da Câmara do Porto. Luís é uma delas e, por estes dias, abriga-se na entrada de um prédio perto do Hospital de Santo António.
O dinheiro não chega
Luís, nome fictício, está na rua há dois meses. Agora sozinho, sem a companhia da namorada, que conseguiu um quarto, protege-se do frio com a pouca roupa que ainda tem. Mas a chuva não parou e, por isso, para não molhar os pés, nem a parede de cartão, improvisou um teto com um guarda-chuva. Moravam numa casa na Avenida de Rodrigues de Freitas. "O senhorio quis fazer um hostel e mandou-nos a todos para a rua", lembra, enquanto come um iogurte misturado com cereais. Tentaram ficar numa pensão, mas era demasiado caro. Tiveram de optar: "A minha namorada tem uma deficiência numa perna e asma, por isso decidimos que devia ficar num quarto. E eu estou aqui. O dinheiro não chega".
Com o olhar pesado, mas com a leveza de quem tem esperança no amanhã, afirma que não há lugar para os pobres na cidade. "O turismo é muito bom, mas estão a esquecer-se das pessoas. Antes conseguíamos arranjar quartos a 10 euros, agora só para cima de 40".
Uma angústia que partilha com José. Não se conhecem, mas vivem a mesma dificuldade. Encontrar um quarto que possam pagar. Na Boavista, em frente a uma luxuosa moradia, José, 53 anos, montou uma casa de cartão. Para combater o frio, cobriu-a com cobertores.
A vida empurrou-o, a pouco e pouco, para a rua. Ficou desempregado e perdeu a casa. Tem uma mochila de roupa e pouco mais. Encontrámo-lo a conversar com um casal de jovens que o visitam regularmente. Engraçaram com Garfield, um gato nada laranja e nada obeso, ao contrário do desenho animado que lhe empresta o nome, que José adotou há dois meses. É o seu melhor amigo.
"É muito difícil sair da rua. Os quartos estão muito caros", lamenta. Conseguiu um trabalho, mas o destino voltou a golpear José. "Arranjei emprego na construção civil. Fizemos a obra toda, mas nunca me pagaram. Nem a mim, nem aos 16 colegas", desabafa.
Apesar dos duros caminhos que percorreu, ainda acredita que as coisas podem mudar. Pela altura do Natal, um estranho passou por José e deixou-lhe uma nota. "E era roxa! 500 euros, nem quis acreditar". Passou o Natal e o Ano Novo num quarto, longe do frio, mas ainda na solidão. Despede-se discretamente e, antes de virarmos costas, no copo de plástico deixam-lhe cinco euros. "Não se esqueçam de dizer que as pessoas são boas e generosas!".
Não há estabilidade
De volta ao Hospital de Santo António, encontramos Vítor, 41 anos, e Carina, 24. Têm muita coisa, mas nada de valor porque já vivem há sete anos na rua. Juntos.
Vítor atropela-se nas palavras. Carina, apesar de tímida, é mais assertiva e conta que já viveram num apartamento, mas, como em tantos outros casos, deixaram de ter possibilidade de pagar a renda.
A mãe de Carina conseguiu sair da rua com um filho que sofre de esquizofrenia. Arrendou um apartamento T0, mas não foi o suficiente para dar um teto a todos.
"A nossa maior dificuldade é o que está à nossa volta", diz Vítor, abrindo os braços. "O tempo, o frio, a chuva, o dinheiro que não temos para comer. Não conseguimos ter estabilidade emocional". E os olhos atiram-se para o chão. As palavras enrolam-se nas ideias. E, mais uma vez, insiste que "não se vive na rua, apenas se existe". "É a estabilidade que não tens. Não tens como tomar banho, não tens casa de banho...".
Bernardo percorreu uma longa estrada. É de Penafiel, mas já está no Porto há alguns anos. Entre os dias embriagados e as desavenças com a família, perdeu o caminho. Num acidente de trabalho, ficou inválido. Não consegue arranjar emprego nem sustento. Está há 13 anos na rua. Tem pouco mais do que um saco com roupas e uns cobertores. Já não pensa em sair da rua. "O que eu mais gostava era de encontrar o meu filho!". Já não o vê há uma data de anos. Tantos que já perdeu a conta. Sabe apenas que se casou. A tristeza abraça-lhe os olhos. E chora. Com saudades e arrependimento das coisas que fez e do que deixou por fazer: "Quebrei muitas promessas".
Não abandona os cães
Mas estar na rua não é para todos uma tristeza. Carlos, 48 anos, aceita com tranquilidade a situação. Morava numa casa em Pinheiro Torres. A pessoa com quem vivia morreu e Carlos andou a saltitar entre abrigos e quartos. Até acabar na rua. Já teve oportunidade de voltar para uma casa "normal", mas não podia ter os cães. "Isso não faço. Não os abandono".
Agora, debaixo de um viaduto, a poucos metros do abrigo de Graça, Carlos construiu uma casa improvisada. Ao contrário da do vizinho, onde apenas cabe um corpo, na de Carlos há espaço para todos. "Tenho dois quartos e uma cozinha. Os meus cães dormem comigo, por isso tive direito a uma cama de casal", diz, com orgulho do abrigo que construiu.
Pormenores
Estratégia Nacional para a Integração de Sem-Abrigo reforçada
Na proposta de Orçamento do Estado para 2020 está inscrita uma verba de 7,5 milhões de euros para a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. "Um salto de 15 vezes no que estava previsto", disse o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em dezembro. O plano de ação para 2019-2020 assenta na premissa de que "ninguém deve ficar na rua por mais do que 24 horas" e cruza a prevenção, a intervenção e integração comunitária, sendo que no primeiro domínio está instituído que haja uma monitorização contínua do fenómeno, que inclua indicadores de risco das situações de sem-abrigo e de precariedade habitacional. Em novembro, o vereador da Habitação e Coesão Social da Câmara do Porto, Fernando Paulo, considerou que as respostas para a integração das pessoas em situação de sem-abrigo são insuficientes e desafiou o Governo a criar uma medida excecional de alojamento.
Diagnóstico
Pessoas em situação de sem-abrigo
A Câmara do Porto tem sinalizados 560 sem-abrigo, 140 a viver na rua e 420 em alojamentos temporários, sendo que a maioria são homens entre os 45 e 64 anos e estão nesta situação há mais de um ano
Aumento registado em quatro anos
Em Portugal, o número de pessoas em situação de sem-abrigo aumentou 157% em quatro anos. Desde 2009 existe no país uma estratégia nacional para a integração destas pessoas