Os grafítis nos prédios e muros contrastam com o aspeto "clean" da clínica de proximidade do Bairro do Armador, em Lisboa, por vezes perfumada com o cheiro da cachupa de Matilde. Vem quentinha, ainda no tacho, e é "um miminho" para quem cuida.
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"É para lhes fazer um miminho", confessa à Lusa Matilde Correia, de 68 anos, que de vestido azul e sorriso na cara carrega um tacho de cachupa para os profissionais de saúde da primeira clínica de proximidade a abrir em Lisboa, em Marvila.
Afirma que o bairro precisava desta resposta, que abriu em março do ano passado, e que a clínica trouxe "tudo bom".
"Aqui é perto, estamos no bairro, que tem muitos idosos, muitos doentes, por isso estou muito contente".
E a satisfação é demonstrada com um tacho de boa comida. Mas há também quem traga arroz doce acabadinho de fazer.
A clínica fica no meio do Bairro do Armador, em Marvila, que tem cerca de 3600 moradores, uma grande diversidade étnica e cultural e está inserido numa zona onde coexistem habitação municipal, cooperativas de habitação, venda livre e condomínio fechado.
Os dados indicam que mais de metade dos inscritos no centro de saúde da zona não têm médico de família atribuído e, por isso, a abertura da clínica foi uma luz ao fundo do túnel para quem, com muita carga de doença, tinha como única opção ir às urgências dos hospitais.
"Não temos problemas de marcações. Temos uma consulta geralmente em menos de 10 dias. O acesso está muito fácil aqui", lembra João Carmona, médico responsável pelas consultas de clínica geral, sublinhando que, sem este acompanhamento, muitas destas pessoas "caíam nas urgências", pois os cuidados primários do Serviço Nacional de Saúde não conseguem responder.
A esta clínica, um projeto da autarquia que envolveu os Serviços Sociais da câmara municipal e a empresa Gebalis, seguiu-se outra, na Alta de Lisboa, uma zona onde quase dois terços da população não tem médico de família atribuído.
A oferta de serviços é idêntica: consultas de clínica geral, enfermagem e nutrição.
Em declarações à Lusa, a médica responsável pelas consultas de clínica geral na Alta de Lisboa confessa que o que a apaixonou neste projeto foi o facto de permitir dar resposta a uma população que, não tendo médico de família, tem uma carga de doença que precisa de resposta e acompanhamento.
"Estas pessoas precisam, são pessoas hipertensas, diabéticas. (...) Precisam de ajuda, precisam de medicação, precisam de fazer exames e não tinham nada", contou, sublinhando que na clínica de proximidade viu uma oportunidade de ajudar a população.
Diz que, quando é preciso, encaminha os doentes para a urgência: "Já me aconteceu ter de chamar o INEM. Mas, por norma, conseguimos resolver aqui".
A responsável, que veio da Santa Casa da Misericórdia, diz que o que mais sentiu neste bairro foi a gratidão das pessoas: "Estas pessoas nem sequer tinham médico que lhes passasse a medicação".
Defende que este tipo de resposta devia aumentar e lembra que muita da população de Alta de Lisboa que também precisa de resposta está fora da área de atuação da clínica.
Na sala de espera, Clarice Botelho, de 91 anos, aguardava ser chamada. Desde que a médica de família se reformou estava sem resposta. E diz que esta "caiu do céu".
Augusta Reais, de 82 anos, também ficou sem médica de família desde que a sua se reformou. Segura o andarilho e entra a passo lento no consultório da enfermeira, onde desabafa: "Queria medir a tensão, tinha de ir à farmácia. Medicamentos tinha de comprar [e precisava de receita]... isto caiu do céu, como diz aquela senhora".
Com dificuldades de locomoção, diz que se não fosse esta resposta "tinha de chamar um táxi e ir para a urgência".
Ao lado, a enfermeira Marlene Brito ouve, atenta, e confirma que, sem este acompanhamento, estas pessoas iriam sobrecarregar as urgências.
Sublinha a importância do trabalho de prevenção da doença e promoção da saúde desta equipa de profissionais, lembrando que, como o acompanhamento da população é contínuo, é possível melhorar um pouco a vida desta população.
"Como trabalhamos de uma maneira que é complementar, acabamos por diminuir o peso que o Sistema Nacional de Saúde poderá ter", afirma a enfermeira, lembrando a importância de manter estes utentes acompanhados para evitar que a doença descompense.
Para tentar ajudar a controlar a saúde dos utentes, entram também as consultas de nutrição. Nesta população, mais do que programas para emagrecer, estas consultas servem para "ensinar a comer".
"Aquilo que é mais prevalente são as doenças crónicas, como a obesidade, a diabetes e a hipertensão arterial", confessa a nutricionista Margarida Bento, sublinhando o papel da alimentação na gestão de algumas das doenças.
Reconhece a necessidade de "explicar às pessoas que comer bem e saudável não tem de ser caro e não tem de ser complicado" e reconhece que os resultados já se notam nas análises de alguns utentes.
A especialista contou ainda à Lusa o caso mais desafiante que enfrentou: "Percebi, a meio da consulta, que [a utente] não sabia ler nem escrever".
"Poderia ser o plano [alimentar] mais perfeito à face da Terra, mas do que é que valia se a pessoa não ia conseguir ler aquilo que estava na folha de papel? Tive de conseguir adaptar através de imagens e de esquemas. São estes pequenos desafios que, quando ultrapassados, são muito gratificantes", conta.
Na sala de espera, Maria de Fátima Tomás, doente oncológica, conta que foram estas consultas que lhe permitiram interromper a espera no SNS. Foi operada há um ano e começou por vir à clínica retirar os agrafos da cirurgia. E foi nessa altura que soube das consultas de nutrição.
"Inscrevi-me e passei a vir aqui. Perdi muito peso e estava à espera de consulta no Hospital de Santa Maria", conta, lembrando com satisfação que aqui também encontra resposta na clínica geral.
Há mais de cinco anos que não tinha médica de família. Foi-lhe atribuída uma, entretanto. "Mas era em Sete Rios. Aqui as consultas são mesmo ao pé de casa".