Estudo apresentado esta quinta-feira avalia impactos em Gaia e deixa 20 recomendações para enfrentar novas crises.
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“Mas que saudades tenho do tempo da pandemia.” Pode até parecer uma afirmação absurda, mas é uma entre as várias conclusões do estudo desenvolvido pelo Instituto Padre António Vieira (IPAV) sobre os efeitos da covid-19 em Gaia, que é apresentado hoje. A “Avaliação e monitorização dos impactos da pandemia na comunidade e suas representações sociais no concelho de Vila Nova de Gaia” traz à luz reflexões profundas de residentes e profissionais que viveram a crise pandémica na linha da frente e deixa 20 recomendações à Câmara para que não se volte a enfrentar outra pandemia “às cegas”.
Entre os mais de mil inquiridos, há um sentimento agridoce face à pandemia. Nos setores da Saúde e da Educação, é transversal a “ressaca pós-covid”: “Houve uma clara sensação de heroísmo destas classes naquela altura e que depois se transformou numa desilusão. Estes profissionais passaram de um período em que lhes batiam palmas à janela, por exemplo, para uma altura em que nem são reconhecidos”, explica o diretor do IPAV, Rui Marques.
O estudo investigou os impactos invisíveis da pandemia em Gaia e de que forma pode o concelho preparar-se para futuras crises. “A resposta está na proximidade”, explicou Rui Marques. “Quanto mais fortes são as relações, maior a resiliência. Foi isso que se observou em Gaia. E trabalhar a proximidade é algo vital. Já havia uma prática entre as instituições além da autarquia, e a sociedade funcionava em rede. Foi fundamental para superar a pandemia. O facto de ser uma cidade de média dimensão também levou a que isso fosse mais fácil”, indicou o diretor do IPAV.
Saúde, Educação e Cultura foram os setores (dos dez estudados) mais sacrificados. Por outro lado, a Economia Local e a Tecnologia foram as áreas que melhor recuperaram. “Neste último setor, o sucesso foi além da pandemia. Aumentou o número de teleconsultas, do teletrabalho e do ensino à distância”, exemplificou Rui Marques. Só em Gaia, durante a pandemia e em contexto escolar, foram entregues mais oito mil computadores face ao ano anterior à pandemia.
“Uma ferida aberta”
“A covid-19 ainda é uma ferida aberta para grande parte da sociedade”, diz o coordenador do trabalho, Carlos Liz. O investigador entende que o impacto na saúde mental “foi gigante e ainda não passou”. E, de mãos dadas com este problema, surge a insegurança que passou a caracterizar o dia de muitas pessoas: “Concluímos que há um medo que voltemos a viver outra crise”.
A investigação propõe 20 recomendações práticas à Câmara de Gaia, baseadas na proximidade. “Foi esta característica que levou a cidade a responder mais rapidamente às adversidades”, considerou Carlos Liz. Entre as propostas, destacou a importância dos decisores políticos terem consciência dos riscos sistémicos e a necessidade “urgente” de mapear quais são os riscos mais elevados para o concelho.
Consciência dos riscos
Reconhecendo-se que vivemos numa era de riscos, levanta-se a questão: estaremos preparados para enfrentar uma nova pandemia?
Para Rui Marques, a resposta “é sim e não”. “Há uma grande aprendizagem face ao confinamento que vivemos e que está fresca na nossa memória. Também há uma consciência da proximidade e de que é em rede que se resolvem os problemas. Mas não podemos baixar a guarda quanto aos riscos, que são elevados”, afirmou.
Detalhes
Projeto único
A investigação encomendada pelo Município com o objetivo de construir uma sociedade mais resiliente, é um trabalho único que pode inspirar outras autarquias a seguir o mesmo passo.
Colaboração do JN
O estudo abrange o papel da comunicação social, domínio que contou com a colaboração do “Jornal de Notícias”. O objetivo foi perceber como pode ser feito um trabalho informativo de forma mais rigorosa e objetiva em tempos de crise.
Recolha de dados
O estudo é extenso e convocou mais de um milhar de pessoas e instituições do concelho. Além de inquéritos, também foram realizadas entrevistas, um estudo de caso e galerias de estímulos, isto é, sessões com visualização de imagens e conversas temáticas.
Balanço
174 mil casos de covid-19 registados em Gaia. O dia com mais novos casos foi 24 de janeiro de 2022, altura em que a transmissibilidade era mais elevada.
416 óbitos relacionados com a covid-19. Do total de mortes por covid-19 em Vila Nova de Gaia, 90% trataram-se de pessoas com mais de 70 anos.
Recomendações
Consciência e gestão de riscos sistémicos
Recomenda-se o município a desenvolver um mapa de riscos, com planos de contingência desenhados, ações de sensibilização e formação para diferentes públicos-alvo, evitando assim viver sob o improviso total a cada nova crise.
Governação integrada, liderança colaborativa
O estudo propõe um reforço das respostas de proximidade, que é crucial para a sociedade adaptar-se a uma nova crise. Sublinha-se a importância da promoção da flexibilidade e da capacidade de adaptação organizacional.
Regeneração psicológica
A importância de recordar o impacto emocional provocado pela pandemia é grande e dessa forma propõe-se uma memorialização da crise e das suas aprendizagens, através de uma Semana de Memória da Covid-19, a realizar em março de 2024.
Rejuvenescimento e novas gerações
O estudo recomenda a conceção e implementação de um plano de transformação da escola habitual em escola assumida e programaticamente relacional. Este programa tem a missão de levar novas ideias que são, por norma, isoladas da comunidade educativa e das novas gerações.
Vulnerabilidades e inclusão social
A pandemia teve um efeito revelador das fragilidades sociais. Neste ponto recomenda-se que se desenvolvam iniciativas de índole cultural para promover a intergeracionalidade.
Ampliação do conceito e das práticas de saúde
A saúde mental tem grandes sequelas, mesmo no pós-pandemia, e por isso, propõe-se que se desenvolva uma estratégia municipal de promoção do bem-estar e da saúde mental.
Naturalidade da vida digital
Desde uma melhor integração da sua oferta digital até à criação de uma aliança para a comunidade digital gaiense, neste tópico revela-se a importância de promover a digitalização das cidades.
Competitividade sustentável da economia
Propõe-se que o município continue a repensar o espaço económico da cidade, através de uma aposta em lógicas territoriais facilitadoras de inovação de condições de trabalho, e que estabeleça uma intervenção ativa como um fator de criação de valor, distintivo, da marca da cidade.
Habitabilidade e mobilidade
A investigação recomenda o desenho de políticas de habitat assentes num referencial tripartido composto por Habitabilidade, Mobilidade e Digitalidade.
Cultura de comunicação aberta
Propõe-se o desenvolvimento de uma estratégia de comunicação que respeite o princípio da verdade, rigor científico, usando todos os canais adequados e treinando os jornalistas e profissionais para as regras da comunicação em contexto de crise.
"Vivemos numa era de riscos"
Rui Marques, diretor do IPAV
Qual foi o objetivo do estudo e qual é a importância de entender os impactos da pandemia?
O estudo recolheu muita informação através de mais de um milhar de inquiridos. No fundo, tentámos perceber como é que as interações sociais e as relações foram afetadas pela pandemia. É importante para entender como devemos agir em eventuais pandemias que se aproximem.
E quais são as principais conclusões?
Acho que o mais importante de sublinhar é que, quanto mais fortes forem as relações, maior é a resiliência da sociedade. Resumidamente, sublinho três conceitos chave entre as conclusões: a proximidade, a rede e a capacidade de adaptação.
Tratando-se de um estudo centrado em Gaia, o que pode fazer a autarquia face às conclusões?
A investigação deixa 20 recomendações ao município. Mas, no fundo, as decisões políticas devem ter em consciência que vivemos numa era de riscos. A qualquer momento pode surgir uma nova pandemia.
Considera que o concelho está mais preparado para enfrentar novas pandemias?
Estamos a falar de um evento recente e traumático. Por isso, a tendência é as pessoas quererem esquecer. O que não devia acontecer. Não podemos baixar a guarda quanto aos riscos.