Mais de uma centena de pessoas percorreu este sábado a Rua do Benformoso, no Martim Moniz, em Lisboa, recordando os valores de Abril, em solidariedade com a população imigrante residente na zona.
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A ação cívica foi organizada em reação à operação policial realizada na quinta-feira no Martim Moniz, condenada por vários partidos políticos e organizações de defesa dos direitos humanos.
Distribuindo cravos de diversas cores, pessoas de vários quadrantes da sociedade, entre as quais representantes do PS, BE, PCP e Livre, explicaram o significado destas flores para a democracia portuguesa.
Moradores e comerciantes da zona - onde vivem e trabalham muitos imigrantes, sobretudo oriundos do subcontinente asiático - acolheram o gesto com alegria e sublinharam a simpatia e o acolhimento da população portuguesa em geral.
De um dos muitos restaurantes bengalis existentes na rua saiu um tabuleiro com jalebi, um doce popular em países asiáticos e africanos, neste caso feito de lentilhas e embebido em xarope de açúcar.
Os manifestantes receberam a oferta entoando o lema "25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!" e a canção "Grândola, vila morena", de Zeca Afonso, que já não é uma desconhecida para Roni Hussain.
Empresário originário do Bangladesh, há já nove anos em Lisboa, diz que é "muito importante" receber apoios como o de hoje. "Dão-nos mais energia", agradece.
"Nós ficámos em Portugal só para trabalhar e ter uma vida boa", resume.
Os imigrantes do Benformoso pertencem a "minorias desprotegidas, que a sociedade do 25 de Abril tem de proteger", vincou o capitão de Abril Carlos Matos Gomes, que marcou presença na marcha.
"Não é assim que se honra Abril"
A intervenção de quinta-feira - em que imigrantes foram encostados à parede, de mãos no ar, e revistados - lembrou-lhe "a polícia de choque a entrar pelas universidades" quando Portugal era uma ditadura.
"O nazismo e o sionismo começaram exatamente pela discriminação racial, política, religiosa", recorda o historiador, denunciando "as falsidades" utilizadas pela extrema-direita para associar a imigração à insegurança.
Presente na iniciativa, Isabel Moreira (PS) considera que "há um antes e um depois das imagens antidemocráticas" da operação de quinta-feira, que resultou na detenção de duas pessoas, portuguesas, e na apreensão de quase 4000 euros em dinheiro, bastões, documentos, uma arma branca, um telemóvel e uma centena de artigos contrafeitos.
"Estrangeiros existem muitos", por exemplo no Príncipe Real e no Restelo, mas a polícia visou "imigrantes pobres, que trabalham muito e com uma determinada cor", distinguiu.
A deputada gostava de ver "um sobressalto cívico" e promete não esquecer "a brutalidade" que aconteceu, porque não cabe num Estado de Direito.
"Não é assim que se constrói um país, não é assim que se honra Abril", recusa, acusando o Governo de impulsionar "o fantasma" da insegurança e de "virar uns contra os outros".
A coordenadora do BE, Mariana Mortágua, quis transmitir "segurança" à comunidade de imigrantes do Benformoso, que tem o direito de "não viver com medo".
"Não é aceitável o que aconteceu. (...) Foi um ato inédito, (...) foi desproporcional, foi direcionado a uma comunidade em específico", criticou.
No bairro, "as pessoas estão assustadas, (...) são trabalhadores frágeis, são pessoas muitas vezes que lutaram muito por obter uma regularização ou estão à espera dela", lembra, saudando a iniciativa cívica "espontânea" e o trabalho dos movimentos sociais contra o racismo e em defesa dos imigrantes.
Lisboa é "cidade de Abril", onde o direito à segurança "não pode sacrificar outros direitos, liberdades e garantias, de ninguém", realçou João Ferreira (PCP), lembrando que é preciso aprender com a história, porque todos podemos ser as vítimas de amanhã.
"A ação a que assistimos há dois dias suscita muitas dúvidas e reservas", assinalou o eurodeputado, criticando o "alarme social totalmente injustificado" gerado pela operação policial.
"São os nossos vizinhos" - lembrou Rui Tavares, deputado do Livre que vive ali perto - e "foram injustamente alvo de uma ação policial que não teve nenhum critério" justificável.
"Estas pessoas também pedem mais policiamento e também pedem mais segurança, agora certamente não pedem é para, no decurso de um dia normal de trabalho, serem encostadas à parede e serem revistadas", condenou, afirmando que o mesmo não acontece "aos estrangeiros dos "bairros finos da cidade".
"Não na minha cidade, não no meu país"
Pela Rua do Benformoso, Rita ofereceu uma mão cheia de cravos, enquanto ia reconhecendo o direito dos imigrantes a trabalharem e a viverem em paz. Cristina explicou o significado do cravo para a democracia portuuesa a um dos muitos estafetas que por ali moram, que pendurou a flor na sua moto.
Trocaram-se abraços, apertos de mão e contactos e uma professora ofereceu aulas de português gratuitas a um grupo de jovens.
Presidente da Associação de Defesa dos Direitos Humanos, Laura Vasconcelos classificou como "intolerável" a operação policial de quinta-feira.
"Não na minha cidade, não no meu país. Não se encostam as pessoas contra a parede, parecia um pelotão de fuzilamento", lamentou.
"Os portugueses estão a apoiar-nos e agradecemos muito, sabemos que a generalidade dos portugueses gosta de nós e nós também gostamos deles", vincou Nasser Shahid, dono de um restaurante bengali na rua.
"A polícia está a tentar encontrar alguns criminosos, mas aquela não é a forma certa de os encontrar", considera, realçando que a comunidade está disponível para ajudar.
"Nós também queremos encontrar os criminosos, podem pedir a nossa ajuda (...). Nós vivemos aqui, temos negócios aqui, vemos e conhecemos muitos deles", afiançou.
"Mas nós não somos criminosos, somos gente pacífica", realçou, enquanto segurava um cravo, do qual não sabia o nome, mas tinha a certeza de que "é um símbolo de amor".