O Senhor dos Navegantes volta às ruas das Caxinas, em Vila do Conde, a maior comunidade piscatória do país. A tradição de enfeitar os andores mantém o fulgor.
Corpo do artigo
"Os dois anos sem a procissão, para nós, foram uma tristeza", atira Luísa Vareiro, enquanto olha os andores, espalhados pela igreja. O Senhor dos Navegantes é a festa maior das Caxinas e o orgulho dos pescadores, por isso, neste ano, Luísa está "feliz, feliz, feliz" com o regresso da "normalidade". E, como se a pausa nunca tivesse existido, duas dúzias de mãos juntaram-se, durante dois dias, na icónica igreja do barco para enfeitar os 16 andores que, domingo, a partir das 16 horas, seguem na procissão carregados pelos pescadores da terra.
"Sem a procissão, a festa não era a mesma coisa", diz Joana Pontes, enquanto vai cuidadosamente pondo, uma à uma, as rosas vermelhas no andor. O pai, pescador devoto, vai-lhe passando as flores. Também ele andou ao mar, anos e anos no bacalhau, depois já mais perto de casa, e tantas vezes carregou o Senhor dos Navegantes.
Ali, na maior comunidade piscatória do país, é a fé quem guia nos dias piores. O Senhor dos Navegantes vai ao leme e, na sua festa, não se poupam esforços. A devoção é tal que Joana foi, há 44 anos, batizada no exato dia do padroeiro, a 6 de agosto. A tradição de enfeitar começou na avó. Seguiu-se a mãe. Agora, é Joana quem lhes segue os passos. Enfeita S. Clemente, Santo António, S. Francisco e o Senhor na Prisão.
Ao fundo da igreja, José Salgueiro tem 25 anos e é o mais novo na arte de enfeitar andores. É dele a Senhora da Bonança. "Ia ser só branco e amarelo, mas, por causa da guerra na Ucrânia, decidi juntar-lhe um apontamento de azul (as cores da bandeira) e de vermelho (simbolizando os muitos que já perderam a vida no conflito)", explica.
A tarefa demora oito horas: corta daqui, espeta dali, ajeita, borrifa, vê de longe, volta a arranjar. "É sem parar", diz, sorrindo. Também ele segue passos de família e, sexta-feira, tirou o dia no trabalho para dedicar-se "de alma e coração" à tarefa. Domingo, seguirá na procissão com três centenas de figurantes, orgulhoso das suas raízes, do brio, da fé e da raça dos homens do mar.
Todos os anos, para enfeitar os 16 enormes andores, chega uma camião TIR cheiinho de flores. Durante dois dias, a igreja não fecha. Trabalha-se noite e dia. É o orgulho das Caxinas a falar mais alto.
A procissão do Senhor dos Navegantes é, por ali, "muito, muito antiga". Esteve 16 anos interrompida, aquando da construção da nova igreja (emblemática pela sua forma de barco). O templo foi inaugurado a 4 de agosto de 1985. A procissão foi retomada três anos depois. Os andores são carregados pelas tripulações dos barcos da terra que, assim, buscam proteção divina para mais um ano de faina. Cada barco dá às festas um quarto do que recebe, durante um ano, cada tripulante. Quem der o maior "quarto" carrega o Senhor dos Navegantes. Este ano, mais uma vez, a "honra" cabe ao "Filipa Miguel".
Sábado, é dia do Senhor dos Navegantes e a igreja está aberta para visita aos andores. Domingo, são esperadas 50 mil pessoas para ver a procissão.
"Já tínhamos saudades da festa do Senhor dos Navegantes. Há mais vida, mais alegria, traz gente à nossa terra. E, no dia da procissão, é um orgulho para nós ver os andores a passar", conclui Olívia Cunha, de 73 anos.