Em 1918 a aldeia do Amieiro travou a pandemia com fogo. Hoje é o isolamento que a salva
"Nadinha. Foi uma espantação, eles tombavam por todo o lado e na nossa aldeia nada, não morreu ninguém, ficamos todos bem" - e Leonor Alcina Beiragrande, sentada na soleira da sua casa, torna a alisar com as mãos pregueadas o avental.
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Aos pés dela vagueia o Lorde, um cão yorkshire terrier entretido a farejar formigas. "É muito esperto, é a minha companhia", diz a mulher de 93 anos, viúva, dois filhos que há muito não moram ali.
É a mais velha dos 60 habitantes do Amieiro, aldeia granítica de Alijó, Trás-os-Montes, incrustada em cascata na margem direita do rio Tua, na garganta do vale aninhado entre sete colinas. É a terra de transição entre o Douro dos vinhos, a sul, e a região norte de montanha a que Torga chamou reino maravilhoso.
Alcina falava do espanto de 1918, quando ali viviam 400 pessoas, e da primeira pandemia do séc. XX, a influenzavírus H1N1, a gripe espanhola que matou 60 mil portugueses e 50 milhões em todo o mundo com severas hemorragias, pneumonias e edemas, os tumores serosos nos pulmões.
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Morreram muitos jovens, alguns velhos, mas menos, morreram ricos e pobres, morreram artistas como o futurista Santa Rita Pintor, o modernista Amadeo de Souza-Cardoso, morreram os pastorinhos Jacinta e Francisco. "Mas aqui ninguém morreu!", diz a chegar em passinhos Manuel Castro, 92 anos, chapéu de feltro.
Senta-se num banco de pedra à frente do café fechado onde está José Cataluna, 84 anos, ambos viúvos idem. E por que é que o Amieiro escapou? "Ora, estamos na cova, protegidos pelo verdor das colinas, e fizemos os fogos e os fumos da proteção".
Era um espetáculo a crepitar, dizem eles - eles então não eram nascidos, habitam as memórias dos seus pais e dos pais deles antes deles. "Íamos colher molhos de mato verde, alfazemas, jasmins, alecrins, coisas dos montes daqui, muita urze, carqueja, rosmaninho e todos faziam fogueiras à mesma hora. Um fogo à porta de cada casa, o sino tocava para acender e toda a aldeia ficava benzida, era uma só nuvem de fumo e foi isso que nos salvou".
O isolamento que salva
Não se vê ali uma criança, juventude também não há. A economia da terra está na agricultura e nos férteis terrenos, protegidos dos ventos norte e nordeste, banhados pelo sol sólido e dócil, propiciam o cultivo de vinho, azeite, laranjas e produtos hortícolas.
Cheira a flor de laranjeira no ar, vários idosos caminham demorosos na rua, são a sua própria rede social, está tudo fechado e quieto, o café, a mercearia, a Junta, e é o som o que mais salta à vista: uma imensa pauta polvilhada pela musicata de pássaros canoros, piscos, pegas, pardais, melros, cucos, corvos e as andorinhas que caçam insetos a surfar no ar.
A toada é virada, passa Jorge Quintas com os cascos do burrenho em percussão - "um burrenho é um cruzado de burro com égua, é bom a trabalhar, cavalo não, cavalo é falso, gosta é de correr e passear".
Tem 71 anos, a mulher Laura 69, trabalham a terra, e a vista à volta deles é de pasmar, cheia amieiros, de zelhas e padreiros de folha canadiana, plátanos-bastardos, uns pinheiros, uns castanheiros, medronheiros, buxos, imensos sobreiros, videiras baixinhas torcidas e lá ao fundo o verde Tua de água a remansar.
Jorge Quintas, que também tem saudade dos fumos bem-cheirosos de outrora, "se calhar ainda os vamos voltar a acender, quem dera", diz a remoer na infância, louva agora aquilo que era queixume: "Este isolamento vai-nos salvar, aqui ainda ninguém apanhou vírus, zero", diz ele a lembrar que o centro de saúde de Alijó é a 15 km e o hospital central, em Vila Real, a mais de 50. "Estamos isolados, foi-se a ponte, foi-se o teleférico, foi-se o comboio, estamos aqui sós".
Inseridos na interioridade, são parte dos 45 563 idosos a viver sozinhos ou isolados em Portugal. Vila Real (distrito) detém o maior número (4515), depois a Guarda (4008) e Viseu; em Lisboa haverá 1138, no Porto 1168.
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zero infetados
Com o Amieiro fechado, também a igreja e o cemitério, o comércio é ambulante: de manhã passa a padeira Cristina Ferreira, da Broa Tua, traz luvas e máscara, de tarde o Henrique do Mercado na carrinha, traz viseira, vêm em dias alternos, todos os dias ao almoço vem a carrinha da Associação Amieiro, IPSS que cozinha para 27 utentes dali e ainda vai a Safres, ao Franzilhal e a Riba Tua. As nove funcionárias, entre elas a Ana Carregueira, que leva as marmitas de porta em porta vestida num fato microporoso, de luvas e máscara azul, todas foram estadas para covid-19 e não há infetados, diz a presidente Célia Quintas.
"Não há infetados no Amieiro, nem na freguesia ao lado, Carlão", confirma Sónia Quintas, presidente da Junta e apicultora. "A Câmara de Alijó comprou 700 testes, foram todos testados nas 11 IPSS e nas 5 corporações de bombeiros, zero coronavírus", diz ela a revelar com orgulho o gabinete de crise 24/24 e as 170 camas de quarentena montadas no gimnodesportivo para o que der e vier. E sorri com o olhar pousado numa cerejeira que está a viçar. "Do que tenho mais saudades de antigamente? Ai, de abraçar as pessoas, de ver as ruas cheias, de ver a alegria florir".