Na aldeia do Freixoeiro, Mação, os populares salvaram as suas casas, recusando a evacuação.
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Maria Resende já chorou, agora está só alagada em suor. São 17 horas e à volta da sua casa, a primeira de Freixoeiro, aldeia do concelho de Mação, distrito de Santarém, está tudo enevoado de branco sujo e os eucaliptos continuam a fumegar. É de Lisboa e aquela é a casa de férias que comprou em janeiro para os quatro filhos, o marido, Duarte, e os dois filhos dele, numa ideia de fuga ao stress e ao buliço da cidade. "Já viu o batismo que tivemos?", diz ela de voz a tinir, estafada, os olhos vermelhos de não dormir, "só queríamos vir para a aldeia sossegar".
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Ela, os miúdos e o Duarte continuam todos a suar, acabou de passar ali um susto de morte: uma hora antes, as labaredas que cruzaram o Estradão da Ribeira do Freixo, que fica logo abaixo, passaram ali à beirinha a bradar e a queimar o alto eucaliptal. Tremeram todos de pavor, mas agarraram-se às mangueiras, às enxadas, ao que havia e avançaram sobre o capim. Ela relata a lacrimejar. "Nunca vimos nada assim, foi medonho, parecia um tsunami, um mar imenso de ondas vermelhas diretas do Inferno. O barulho, o silvar, a onda de calor, nunca vivemos nada assim", e a voz dela recomeça a tremer. Os quatro filhos olham-na em silêncio, ela recompõe-se, suspira, continua: "Esta aldeia é uma lição, juntamo-nos todos, lutamos todos, nós e uns moços daqui, éramos dez, tivemos muito medo mas decidimos que não íamos fugir, que íamos lutar. E vencemos", e ela pára e exala um suspiro longo.
Salvaram a sua casa e outras quatro dali. Não viram bombeiros - os bombeiros travavam uma luta inglória a escassos metros dali contra os reacendimentos do fogo original do dia anterior que se prolongou pela noite sem dormir. De manhã acordaram com os Canadair, tudo parecia bem, mas em 16 horas viram o Inferno a golfar.
Martinzes quase ardeu
Naquela tarde o fogo veio lá de trás. São 14.46 horas e as chamas abeiram-se agora da aldeia de Martinzes e do cortelho onde Vítor Silva, 51 anos, tem as suas seis ovelhas. Mais dois minutos e o fogo comia-lhe barraco e animais, mas o autotanque dos Voluntários de Alcobaça e quatro bombeiros chegam, saltam frenéticos sobre o capim e aos berros rasuram as chamas, que bufavam a crestar nos pinheiros.
Vítor, que mora sozinho numa casa branca e é um dos quatro habitantes de Martinzes, veste ainda a camiseta verde com que ontem se deitou. Tem os olhos raiados. "Se dormi? Nada! Fui à cama uma hora aí pelas 5 da manhã, mas com a aflição nem sei se os olhos fechei".
Ele diz isto e depois olha para onde os bombeiros, que já vão abalar, levantavam os braços a apontar. Vemos todos: atrás da aldeia dele, na colina antes de Sarnadas, levanta-se uma coluna preta espessa de fumo que continuava a crescer.
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Missão falha
São 15.15 horas. Os bombeiros juntam-se aos outros tanques no Estradão da Ribeira do Freixo fora, são de Benavente, Almeirim, Caxarias, Minde e de Ferreira do Zêzere. A missão deles é dupla: evitar que as chamas cruzem o Estradão e avancem para o Freixoeiro, onde há cinco casas habitadas e ninguém as quis abandonar; precisam também de travar o fogo antes de Sarnadas, aldeia de 15 pessoas.
Apesar dos esforços e da ajuda de vários populares que circulam velozes e voluntariosos em pick-ups com tanques de plástico carregados de água - são os kits municipais dados depois dos fogos de 2003, mas apesar dos esforços, a missão vai falhar. Empurrado pelo vento que virou de sudoeste, o fogo a cavalgar, chega a Sarnadas. Muito ingloriamente, as labaredas de vermelho laranjão cruzam o alto do Estradão e entram na mata do Freixoeiro. Foi um azar assim: os tanques todos avançavam na sombra do fogo que podia entrar nos Cardigos, a sede da freguesia, e só ficou para trás o tanque do Zêzere; foi um exato minuto depois de acabar a água que o fogo, que parecia ciente, lançou uma projeção por cima do alcatrão e do outro lado começou a arder. Em menos de um fósforo já cantava todo rubro nas copas altas dos pinheiros e do eucaliptal, avançando livre em direção ao Caniçal e às portas de Proença-a-Nova. Eram 15.55 horas quando se deu esse momento de desolação e o máximo que todos pudemos fazer foi ficar a olhar e ver arder.