Começaram os loucos anos 2020. Soltaram-se as amarras sanitárias impostas pela pandemia. E o Porto saiu à rua para festejar um S. João novo, o do equinócio, como se viu nesta sexta-feira à noite, com milhares de tripeiros a celebrar ao relento. Pop, rock, reggaeton - "La gasolina, la gasolina!" -, juventude, testosterona, estrogénio. E o anticlímax: moradores da baixa queixam-se da escalada de agressões, de assaltos e de alterações à ordem pública. A Polícia reforçou a vigilância.
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Viagem aos bastidores da operação policial na movida do Porto, decorrida na sexta-feira à noite, a primeira do desconfinamento quase total. Ou o Estado a exercer a ordem e a dissuasão possíveis num território de folia, de copos e de todos os excessos. E de não-Direito, como se queixam os moradores da Zona Histórica da cidade, que também denunciam a escalada da violência, associada à vertigem do "botellón" e de "alguma coisa nova que anda a pôr os miúdos completamente alucinados".
Após dois anos de todas as restrições, por via da pandemia de covid-19, e chegado o dia da libertação, como também já se chama ao desconfinamento que ainda não é total, patrulhas da PSP cuidaram da vigilância e da observância da ordem pública na primeira grande noite de uma certa emancipação sanitária.
"É uma operação de visibilidade e de prevenção da criminalidade. Há muita ânsia no regresso da movida e estamos outra vez numa nova adaptação", disse ao JN o subcomissário Luís Macedo, a quem coube coordenar a vigilância à movida tripeira, retornada em peso, para uma celebração de liberdade.
Dissuasão foi a palavra-chave das manobras policiais, que compareceram no centro histórico com um forte dispositivo. Um pelotão operacional, uma equipa de intervenção rápida e outra de prevenção e reação imediata, em motas, montaram o esquema de segurança na zona da Cordoaria. O Corpo de Intervenção permaneceu em reserva, para qualquer eventualidade, e polícias à paisana completaram as diligências, também com a colaboração da Polícia Municipal.
Brindes de todos os lados
Os bares da baixa encheram-se como não se via desde 2019. Jorrou a cerveja. Tchim-tchins e brindes de todo o lado, em italiano, em francês, em alemão, em polaco, em inglês e no poliglotismo cosmopolita. A clemência deste início de outono - já de madrugada, às duas da manhã, os termómetros andavam rente aos 19 celsius - também atraiu muita gente ávida de se soltar de quase dois anos de restrições.
Finalmente, vêm aí os loucos anos 2020. E tudo seria perfeito se a medalha não tivesse reverso. Um grupo de moradores e comerciantes das imediações do Passeio das Virtudes, do Campo dos Mártires da Pátria e da Rua Mártires da Liberdade alertou o Conselho Municipal de Segurança do Porto para alterações da ordem pública nas ruas do centro histórico, associadas ao "botellón".
A Câmara e a Polícia Municipal negaram responsabilidade pelo fenómeno e observaram que compete ao Ministério da Administração Interna resolver o problema. A PSP investiga "fenómenos criminais" na movida.
"Impunidade e violência"
No início foi o "botellón", tendência criada em Espanha, nos anos 1980, por jovens sem dinheiro para ingresso nas discotecas e que tomaram as ruas para a diversão noturna. Chegou cá na última década e logo criou mal-estar entre os moradores da Baixa, que sempre contestaram o ambiente de excessos e de barulho até altas horas da madrugada.
"Com a pandemia, tudo se agravou. Criou-se um clima de impunidade e de violência insuportáveis", conta ao JN uma residente na zona da Cordoaria, que prefere manter o anonimato, por receio de represálias de "grupos organizados e violentos", que não identifica, muito menos nas vizinhanças. "Vivemos aqui há muitos anos. Isto é uma aldeia. Conhecemo-nos todos, não é ninguém daqui", esclarece a mesma testemunha.
Abordado pelo JN, um comerciante não escondeu a identidade - "Ainda não estamos na Sicília!" - e descreveu "um ambiente de terror". "Frequentemente, acordo de madrugada, com gritaria e muita correria. Ainda na quarta-feira, acordei às 2.30 com gritos. Vi três homens e uma senhora a serem agredidos por outros cinco homens. Assaltos e roubos de carteiras sempre houve, mas isto é violência muito grave e está a atingir proporções alarmantes. Se ninguém fizer nada, isto vai acabar muito mal, porque a total ausência de policiamento instalou a impunidade", diz Eduardo Costa.
"Sexo ao vivo"
Todos os outros testemunhos recolhidos pelo JN foram prestados sob reserva de anonimato. "Porque isto está a tornar-se mesmo muito perigoso. Eles andam em bando e são violentos. São cada vez mais os assaltos à mão armada, à facada. E suspeito que anda por aí alguma coisa nova, porque os miúdos andam completamente alucinados. Não creio que possam ficar assim, tão violentos, só com o álcool ou um charrito", conta outro morador.
Ainda outro residente fala de "festas de total deboche" em plena via pública, "com sexo ao vivo e tantas situações degradantes". "Eles e elas fazem das ruas sanitários, à porta das pessoas, sem qualquer pudor", diz uma moradora da Rua dos Mártires da Liberdade. O jovem segurança de um bar aponta a coleção de objetos apreendidos à porta: "Facas, soqueiras, bastões extensíveis, iguais aos da Polícia. Apanhamos de tudo. Parece que vêm para a guerra. Isto está a ficar perigoso".
"Fenómenos criminais"
Este e muitos mais relatos de distúrbios da ordem pública foram transmitidos esta semana ao Comando Metropolitano da PSP do Porto, onde uma delegação de moradores da Cordoaria foi levar as preocupações da vizinhança. A superintendente Paula Peneda esclareceu ao JN que "a zona tem merecido a atenção por parte do Comando Metropolitano da PSP do Porto, sem descurar as demais áreas da cidade ou outros concelhos onde a PSP tem a responsabilidade da segurança dos cidadãos".
"Esta Polícia - concluiu a superintendente -, no intuito de cumprir com a sua missão de garantir a ordem, segurança e tranquilidade públicas, bem como de prevenção e combate à criminalidade, tem procurado adotar as medidas preventivas e de investigação mais adequadas aos fenómenos criminais em apreço".