"Quando o povo ocupou o que era seu". Netos de mineiros lançam livro sobre a "tradição de resistência" da freguesia.
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S. Pedro da Cova celebra o 46.º aniversário da "Bastilha" local, a tomada dos escritórios da Companhia das Minas de Carvão pelo poder popular, verificada a 22 de maio de 1975, no auge do Processo Revolucionário em Curso. A efeméride, que se celebra hoje, é também assinalada pelo lançamento do livro "Quando o povo ocupou o que era seu", assinado por três netos, bisnetos e tetranetos de mineiros, orgulhosos da linhagem e da tradição de resistência dos antepassados.
Naquela quinta-feira daquele maduro maio de 1975, professores e alunos da Escola Preparatória D. Afonso V guiaram a população da freguesia do concelho de Gondomar na marcha pela expropriação do património da complexo mineiro a favor dos operários.
Exploração
A causa próxima da sublevação foi a exigência de cancelamento e retorno das rendas das casas cobradas aos operários após o encerramento do complexo mineiro, havia já cinco anos. A razão remota foram "os 170 anos de exploração do povo, que exigiam uma recompensa justa", como verifica Micaela Santos, curadora do Museu Mineiro de S. Pedro da Cova e coautora do livro.
"A população tinha o sentimento de que, pelo trabalho de tantas gerações nas minas, os operários tinham o direito de usufruir das casas, apesar de muitas não terem as condições mais básicas. Muitas delas nem casa de banho tinham. E muitos trabalhadores nem sequer receberam indemnizações", acrescenta Ana Paula Correia, que também assina "Quando o povo ocupou o que era seu".
Esse ato original da revolta - gizado, na retaguarda, pelo Movimento das Forças Armadas e pelo Partido Comunista Português - redundou na ocupação dos escritórios do complexo mineiro e na apropriação de muitos documentos, incluindo ficheiros da polícia política sobre os trabalhadores da mina.
Foi também ali e naquele momento que se assinalou o princípio do Centro Revolucionário Mineiro, movimento popular que ajudou a gerir o processo de ressocialização de S. Pedro da Cova, na habitação, na saúde, na cultura ou na alfabetização das populações.
"nem viam o sol"
"Foi uma libertação humana, carregada de todo o simbolismo", observa Micaela Santos. "Por isso é que em S. Pedro da Cova, tal como nas zonas industriais do Sul e nos campo do Alentejo, o 25 de Abril tem uma outra dimensão e uma outra participação", atalha Daniel Vieira, ex-presidente da Junta e coautor da obra.
"Quando as minas encerraram ficou um vazio. Havia pessoas que não sabiam fazer mais nada. Aliás, havia pessoas que nunca tinham saído de S. Pedro da Cova. Alguns nem viam o sol. Entravam na mina de manhã e saíam à noite. Viviam para a mina, em casas da mina, cujo espaço de recreio era a própria mina. A companhia fechou e ficou, além do vazio social, um forte sentimento de injustiça, porque embora o carvão e os recursos naturais fossem de S. Pedro da Cova a população nunca tirou qualquer benefício disso. Daqui levaram riqueza, aqui exploraram o povo. E isso criou um sentimento de muita injustiça, porque, além da ditadura, os mineiros tiveram de suportar um esmagamento social feroz", conclui Daniel Vieira, vereador da CDU na Câmara Municipal de Gondomar.
DADOS
Plenário e luta
A 2 de junho de 1975, o MFA juntou milhares de pessoas num plenário ao ar livre, no campo de futebol de S. Pedro da Cova. Duas moções aprovadas de braço no ar: expropriação dos bens da Companhia das Minas, nunca concretizada; e alteração do nome da Escola Preparatória D. Afonso V, "um colonialista", para Escola Preparatória José Sarrisca, "mineiro antifascista".
Ação e palco
"Quando o povo ocupou o que era seu" descreve o ambiente de exaltação revolucionária do Verão Quente e as visitas de altas figuras da política a S. Pedro da Cova, de Cunhal a Otelo, de Aurélio Teixeira de Sousa a Otávio Pato. O bastião abrilista foi também palco de concertos de cantores de intervenção, como Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino, José Mário Branco, Jorge Letria e Sérgio Godinho.
Poema e hino
A música de intervenção andou a par de Abril e também foi uma bandeira do Centro Mineiro Revolucionário. Dessa época sobrou "De mineiro a morador", poema de João Loio, cantado por José Mário Branco, frequentemente entoado como hino dos mineiros de S. Pedro da Cova.
Trabalho e fome
Antes do livro que tem lançamento marcado para hoje, Daniel Vieira, ex-presidente da Junta, assinou outra obra, "Não podiam trabalhar com fome", relato da greve contra a fome, que mobilizou os mineiros, em 1946.