Há 500 anos nascia a Rua das Flores, que "contribuiu para o Porto ser mais moderno"
Foi aberta para ligar dois mosteiros, mas com ela abriu-se também uma "ligação estratégica de economia". Celebram-se, em 2021, os 500 anos da Rua das Flores, que "contribuiu para o Porto ser mais moderno".
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"Há 500 anos, a cidade do Porto era um espaço amuralhado e, no seu interior, havia apenas uma rua importante e larga, a Rua Nova, ou Rua Formosa, feita no tempo de D. João I, em 1392-1393", explica à Lusa Francisco Ribeiro da Silva, comissário da exposição "Rua das Flores - Passagem e Permanência", patente até 28 de fevereiro de 2022 no MMIPO.
Em 1521, abria-se uma nova via, moderna, que "pretendeu duas coisas imediatas: uma é ligar o Largo de São Domingos [onde fica o Mosteiro de São Domingos] e o Largo da Feira, onde ficava o Mosteiro de Ave Maria", e a outra foi abrir "uma ligação, sob o ponto de vista estratégico, de economia, muito importante, com a ligação entre a Porta da Ribeira e a Porta dos Carros", que ficava em frente à Igreja dos Congregados.
"Essa Porta de Carros era a porta de abertura para o interior do norte do país - Guimarães, etc. Digo Guimarães porque foi importante, na medida em que produzia muito linho e foi muito exportado em épocas posteriores", refere o historiador.
Com o aumento das trocas comerciais, "a cidade foi crescendo - a população da cidade, antes da abertura da Rua das Flores, não chegava a 12 mil pessoas", mas, "no tempo de D. Manuel, com as Descobertas em geral, o país começou a progredir bastante".
Nesse cenário de expansão económica, a Rua das Flores reveste-se de importância estratégica porque servia "de ligação interna e, sobretudo, de ligação externa".
"Relativamente larga para a época, hoje não é nada larga, nem comparada com a Rua Nova, mas enfim, era uma rua direita, com pavimentação de pedras pequeninas, boa para cavalos andarem, mostrou-se frágil porque os cavalos faziam covas, arranjou-se pavimento mais durável pouco tempo depois, e os nobres começaram a construir casas na Rua das Flores", relata o especialista.
A empreitada foi feita num "espaço enorme que era do bispo e do Cabido" e foi da devoção do bispo do Porto a Santa Catarina de Alexandria que a rua ganhou o seu nome, na altura Rua de Santa Catarina das Flores.
Para além da toponímia, a devoção ficou inscrita no traçado da rua pela presença da roda dentada, marca do bispo na época, que representa o instrumento com que a Santa foi torturada.
O Cabido não ficou esquecido, e é por isso que é possível ver em algumas casas representações de São Miguel Arcanjo, ainda que em menor número.
"Como a rua foi aberta no espaço do bispo e do Cabido, quem fez casa, e muitos fizeram casa na Rua das Flores ao longo do século XVI e XVII, pagava-lhes foro. Era normal e durou até ao liberalismo, 1820, ou se quiser 1826, altura da Constituição", adianta Ribeiro da Silva.
A história daquela via confunde-se também com a da Misericórdia, que abriu ali o Hospital D. Lopo, que "foi o único hospital das redondezas, da cidade e arredores, digno desse nome", com "equipa médica, cirurgião, sangrador, enfermeiros".
"Tinha, inclusivamente, uma enfermaria para doenças contagiosas mais graves", sublinha o historiador.
Essa importante valência explorada pela Santa Casa da Misericórdia do Porto, que se sediou, a partir de 1550, naquela rua, trazia muito movimento àquela zona.
Começam então a surgir "casas comerciais, por exemplo, de sedas e panos bons", mas "sobretudo de ourives".
"A Rua das Flores é caracteristicamente uma rua de ourives. Em 1808, quando os franceses invadiram Portugal e conquistaram o Porto no ano seguinte, depois da primeira invasão, foi decretado por Napoleão um imposto a pagar pelos portugueses. Era muito elevado e então começaram a recolher o dinheiro. Fez-se uma espécie de roteiro sobre as atividades económicas, comércio e mesmo artesanato. Nessa altura, foram inventariadas cerca de 78 casas de ourives no Porto. Dessas, 26 eram na Rua das Flores, 25 na Rua do Loureiro, e outras espalhadas. O grande forte do ouro era aqui e na Rua do Loureiro. Pelo tempo fora foi assim", explicou.
Mas nem tudo o que brilha é ouro, e a rua desenvolveu-se também muito à conta dos mercadores que por ali passavam.
Para além de epicentro económico, firmou-se como um importante polo cultural, por onde passavam muitas e importantes procissões, danças e representações teatrais e cortejos de aclamação de reis.
Exemplo disso é "o coração de D. Pedro, que morreu em Queluz. O coração veio para o Porto, primeiro pela Ribeira, depois até à Lapa, onde está ainda hoje. Foi feito um cortejo que passou pela Rua das Flores".
Aquela via inaugurou ainda uma "parte urbanística muito diferente", já que se deu "importância ao alinhamento das casas, que era uma coisa, de certo modo, nova", continuou.
Os 500 anos da Rua das Flores são celebrados numa exposição do Museu e Igreja da Misericórdia do Porto (MMIPO), que marca a "Passagem e Permanência".
Sobre o título da mostra, Francisco Ribeiro da Silva, realça que "há permanência", como "o traçado da rua e casas que se mantêm", mas "há passagem, mudança, que faz parte da vida".
"Imaginemos que um homem importante do século XVI ou XVII renasce. Reconheceria a rua? Provavelmente sim, provavelmente não".
Uma coisa é certa: "a Rua das Flores contribuiu para a cidade do Porto ser mais moderna".