A primeira mulher na direção artística da Bienal de Arte de Cerveira defende uma rutura com a condução habitual do certame.
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A primeira mulher a assumir a direção artística, em 44 anos de história, da Fundação Bienal de Arte de Cerveira. Chega com determinação de promover mudança. Em várias frentes: Afirmar o evento dedicado à arte contemporânea como "um projeto político" capaz de mudar o Mundo, lado a lado, com os de vanguarda a nível global, como Veneza (Itália) e Kassel (Alemanha).
Além de dirigir a Bienal de Cerveira, é diretora-geral de uma galeria de arte, em Braga. Vai manter-se a trabalhar?
Este [o cargo na direção artística da Bienal de Arte de Cerveira] não é um emprego para a vida. É um trabalho passageiro. Devemos estar aqui, dar o nosso contributo que entendermos necessário e que não deve ser excessivo, e dar lugar à renovação. Acho que um dos problemas que esta casa foi tendo foi uma espécie de continuidade, onde umas pessoas passavam para as outras. Entendo que isso não é positivo num evento que é temporário.
Faltava uma rutura?
Acho que é preciso fazer ruturas e depois, quando eu sentir que a minha rutura está feita, tenho que passar o lugar a outro. Aqui prevê-se que exista novidade de dois em dois anos e uma pessoa não consegue trazer novidade por décadas a fio. Consegue fazê-lo por uma, duas ou, no limite, três edições.
Estou cá de passagem. Tenho esse desprendimento em relação a tudo na minha vida. Isto acabou por acontecer, houve uma mudança de ciclo político [nas últimas eleições foi eleito novo autarca] e eu senti que era o momento de me chegar à frente e de haver um corte com uma espécie de paternalismo. Senti que já tinha caminho suficiente para não aceitar mais isso. Nesta casa a passagem de umas pessoas [direções] para as outras foi sempre assim. Havia uma passagem, mas havia quase uma supervisão da pessoa anterior. Isso talvez tenha trazido no início, nos anos de 1980, estabilidade, consistência do projeto, mas agora não.
Quando olhamos para os grandes eventos internacionais, que nos são de referência, vemos que Kassel [mostra de arte contemporânea na Alemanha] de cinco em cinco anos tem uma direção artística diferente; a Bienal de Veneza de dois em dois anos tem uma direção artística diferente; e São Paulo também muda de dois em dois anos. Há uma equipa que se mantém e aqui há e deve ser mantida, mas depois tem de haver uma renovação de visão.
Estabeleceu o seu limite para essa renovação?
Tenho uma ideia até onde devo ir. Essa também é uma marca que quero deixar: quando se chega a esta casa, faz-se um caminho e a seguir devemos dar o lugar, para a casa se refrescar e deixar de ser uma Bienal dos lugares cativos. Há aqui muitos artistas que vão participando, que têm lugar e eu tenho muito respeito por eles, mas de dois em dois anos temos de apresentar coisas novas. Os nossos premiados devem merecer sempre a nossa referência, mas em 22 edições já premiamos muita gente e parecem sempre os anteriores. Temos de dar aqui espaço e acompanhar a vanguarda.
Quer romper com o que lhe está estabelecido?
Quero. Sei que isso não é uma atitude para fazer amigos, mas que acho que pode ser positiva para esta casa. Tenho muito respeito pelo Jaime Isidoro [fundador da Bienal de Arte de Cerveira]. Era um homem especial, como artista, como divulgador, como visionário e colecionador. Era uma pessoa inspiradora. Tenho muito respeito pelo mestre José Rodrigues, pelo Henrique Silva, pelo papel que tiveram e pelo trabalho que aqui fizeram. Tenho muito respeito pelos convites que me foram dirigidos pelo professor Cabral Pinto [anterior diretor artístico], mas acho que temos de avançar - e também na dimensão artística.
Para si, o que representa esse avançar?
A arte contemporânea é o primeiro fenómeno artístico verdadeiramente global. Há um conjunto de coisas e de questões que nos interessam a todos e os artistas estão atentos a isso. Estive na Documenta de Kassel, onde aconteceu uma grande polémica com a diretora artística, por causa de uma obra que foi mandada retirar, acusada de antissemitismo - quando na realidade a obra fazia uma crítica, na minha perspetiva, àquilo que é uma militarização dos nossos países e à Mossad, como a outras organizações militares. A diretora demitiu-se. No dia a seguir, quando eu lá estou, já há uma instalação artística no lugar de onde a obra foi retirada e quando estou a sair está a Polícia a retirar a instalação. Ou seja, isto está a ferver. A arte está a fazer esse trabalho. E Cerveira precisa dessa abertura ao Mundo.
Precisamos de amplificar estas 29 nacionalidades [de artistas participantes na edição deste ano]. Isto precisa de ser uma Bienal que representa o Mundo. Precisa de verdadeiramente fazer esse processo de internacionalização, não apenas no número de países, mas na expressão global.
Acha que a Bienal de Cerveira deve aproximar-se mais da população, ou cingir-se à comunidade artística?
Penso que a ação da Bienal, ao nível da educação e mediação cultural, da programação paralela, deve tocar todos os públicos e é por isso que temos este ano um programa de intervenções e residências artísticas em todas as freguesias. E também por isso vamos ter um segundo trimestre de Bienal, em que vamos trabalhar com instituições de Ensino Superior artístico e com escolas.
Agora, não temos que - naquilo que é a apresentação da produção - ser populares. Temos que ser exigentes. Isto tem de ser aberto à comunidade artística, mas a toda e não apenas à comunidade artística cativa. Os artistas não podem sentir que esta Bienal não é deles.
Não podem sentir que é uma Bienal "para amigos", é isso?
Esta não pode ser uma Bienal para amigos. Todos nós os temos. Tenho cá artistas representados de quem sou amiga, mas estão porque têm qualidade. Tenho outros, de quem sou amicíssima e gosto do seu trabalho, mas que não estão - e eu fiz parte do júri do concurso -, porque não se enquadravam no tema ou nas propostas.
Sentiu que poderia haver a ideia que, a determinada altura, esta foi uma Bienal "para amigos"?
Sim, sem dúvida. Tenho de dar um parecer sincero. Agora tenho o feedback da comunidade artística, que a estou a tratar com todo o respeito - até porque herdei uma lista de convidados que estamos a expor -, mas que não está contente porque está a sentir que o critério é outro e vai ser outro.
Está satisfeita com a Bienal Internacional de Arte deste ano, que é a 22.ª edição?
Gostava de ter tido tempo para fazer mais coisas. Nomeadamente, de ter tido a possibilidade de interferir nos artistas convidados. Gostava que esse projeto tivesse uma linha curatorial mais forte, como tem o concurso. Estou muito orgulhosa da exposição de homenagem à Helena Almeida, que coloca a obra dela em diálogo com a de outros artistas. É um risco que estou a correr. Estou preparada para desentendimentos e críticas. E sobretudo, estou muito contente, porque conseguimos fazer obras, melhorar espaços e a sua qualidade. Agradeço muito ao presidente da Câmara (Rui Teixeira) que colocou tudo à nossa disposição. Sinto que a Bienal está digna.
Filha de um hippie nascida na aldeia
Helena Mendes Pereira, 36 anos, transmontana, filha de um hippie, nascida na aldeia de Abaças, entre Vila Real e a Régua, com percurso profissional trilhado, nas áreas da arte e cultura, entre o Porto e o Minho (Braga e Guimarães), é a nova diretora artística da Bienal de Cerveira. Licenciada em História da Arte, tem ainda formação em Museologia e Comunicação, Arte e Cultura. Foi empresária, teve uma produtora, programadora e é atualmente curadora e diretora-geral da Zet Gallery, em Braga.
Queremos ser uma referência onde se apresenta vanguarda
Como foi o seu percurso profissional até chegar à direção da Bienal de Cerveira?
Há um caminho que começa em Cerveira, em 2007, por um conjunto de casualidades. Tenho aqui a minha experiência de contacto com a arte contemporânea. Quando acabei a minha licenciatura, vinha de dois verões a estudar em Itália, queria estudar Barroco, vinha absolutamente fascinada, é o tema da minha tese. E quando cheguei a Cerveira, descobri na arte contemporânea alguma coisa do ponto de vista do discurso e da ação concreta que eu acredito que a arte e que a cultura podem fazer no Mundo.
Na altura, estávamos em plena guerra no Iraque e era tudo muito intenso. Depois, havia em Cerveira algo que ainda não tinha experimentado e fazia parte do meu imaginário, relacionado sobretudo com os anos 1960 e 70. O meu pai foi hippie, participou em tudo o que foram ações coletivas pós-25 de Abril e eu ouvi muitas histórias.
Como era esse ambiente?
De repente, cheguei a um lugar onde as pessoas almoçavam e jantavam juntas, encontravam-se, conversavam, havia ateliês ao vivo e era verdadeiramente um ambiente convivial. Vim por fazer 15 dias e fiquei até a Bienal acabar. Pareceu-me que o meu caminho podia ser por aí, pela arte contemporânea e pelos museus.
Sendo a primeira mulher na direção em 44 anos de existência da Bienal, considera que esse facto constitui por si mesmo um elemento de mudança?
Dei-me ao trabalho no final do ano passado, quando comecei a pensar no que queria fazer, de realizar um estudo em que considerei companhias de teatro, museus nacionais, um conjunto de 100 estruturas a nível nacional, e só há na liderança 23 mulheres. Como é que é possível, se há mais mulheres em doutoramentos e a trabalhar neste setor? Acho que isto acontece porque vivemos numa sociedade conservadora. A obra da Paula Rego fala nisto: dentro de casa, da família, as tarefas continuam a recair sobre a mulher. E a mulher coloca-se essa pressão. Nós continuamos a dizer ele [homem] ajuda. Não, não ajuda. As tarefas são de todos.
O facto desta Bienal ser em Cerveira, longe dos centros de decisão, dificulta atingir objetivos?
Não facilita. No meu percurso, trabalhei no Porto e, de resto, em lugares que diríamos periféricos. Em Guimarães, que é para mim um dos polos criativos mais espetaculares do país. Agora estou em Braga. Curiosamente, andei sempre nestas periferias e o gozo é muito maior. É mais desafiador, mas acho que os projetos culturais nos territórios de baixa densidade, em novas centralidades, podem trazer uma visibilidade e ter um impacto económico. Acho que, este ano, já se está a fazer um trabalho de ir ao encontro da essência da Bienal, mas com renovação.
O discurso que me chateia é sempre a dizer que esta é a Bienal mais antiga da Península Ibérica, mas nós não queremos ser só a mais antiga - queremos ser a mais antiga e o espaço de referência a nível nacional e internacional, onde se apresenta a vanguarda.