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Na sala das crianças está a dar o Panda. Quatro mães e quatro filhos - uns tranquilos, outros irrequietos pelo chão - veem televisão enquanto a hora de jantar dos miúdos não chega. Primeiro comem eles, depois elas, é a regra. Leonor, três anos, cabelo muito loirinho, diferente do da mãe, puxa pela mão da Irmã Margarida como que a pedir alguma coisa. "Ah queres bombons? Vou-te buscar bombons." E lá vai, em passo pequeno como ela, uma criança de cada lado.
Margarida Azevedo é a responsável pelo Lar Luísa Canavarro, no Porto, um dos poucos da cidade e da região que acolhem jovens grávidas e mães adolescentes em situação de vulnerabilidade social ou económica, durante um período transitório (às vezes menos transitório do que o desejável). "Temos mães durante muito tempo aqui na instituição porque não há forma de elas se conseguirem organizar. Porque não têm casa e não conseguem com o ordenado, e com um filho, autonomizar-se lá fora, com um apartamento, uma casa. Não conseguem, é impossível", explica a presidente da IPSS (instituição particular de solidariedade social), administrada pela Congregação do Bom Pastor, que tem um acordo de gestão com a Segurança Social que garante a sustentabilidade financeira. "Algumas jovens têm trabalho, outras estudam, e nós aqui vamos ajudando. Tudo lhes é oferecido para que possam juntar esse dinheiro" para o futuro.
"Esta é a nossa casa. A nossa casa"
Para Vanessa, o futuro faz-se dia a dia. "Somos nós que o fazemos", encara a vida assim. Quando há sete anos chegou "barriguda" ao lar a que hoje chama casa, só tinha o sexto ano. Depois fez o nono, depois o 12.º, depois arranjou trabalho num hotel na Rua da Alegria - coisa que não lhe falta - e agora espera, já há dois anos, por uma habitação da Câmara. No quarto onde dorme, no segundo piso do edifício, cabe-lhe quase a vida inteira. Tem duas camas iguais, uma para ela e outra para a filha de sete anos, sorrisos emoldurados sobre a cómoda, palavras que a marcaram coladas à parede, muitos peluches e a cabeça de um Draco (a mascote do F. C. Porto) feita de cartão em cima de um berço.
"A minha vida é um livro, é uma história muito grande", diz com tempo e vontade de o abrir. Quando veio para cá, tentava curar "uma vida de muita turbulência" e garantir paz à bebé por nascer. Então a viver num quarto em Braga e perante a ameaça de perder Luna para uma instituição, institucionalizou-se com ela. Pela mão da associação Vida Norte, acabou por encontrar uma vaga no Porto. "Mal entrei aqui, senti-me segura, muito segura", recorda. "No início não foi fácil, era como se fosse uma prisão. Eu não sabia o que era uma instituição." Nunca foi mal-educada, sempre foi "boa moça" e com gosto em ajudar, mas "respondia torto" (culpa o jeitinho algarvio de dizer as palavras), fechava-se em copas e não havia dia em que não fosse parar ao gabinete. "Foi muito complicado para elas lidarem comigo", admite.
Elas são "as doutoras" - as responsáveis técnicas. "São a minha família, é bonito. A dra. Daniela eu considero como minha mãe. Às vezes, na brincadeira, até lhe digo 'está a ver, mãe?'. E as outras técnicas são minhas tias". É muito grata a todas, por tudo. "Tinha a Luna dias e eu comecei a fazer umas quatro, cinco horinhas para ganhar os meus 20 euros, para juntar algum. Eu tirava leite para pôr no congelador para darem à menina. Acabavam essas cinco horas, vinha para casa e tomava conta dela", recorda. "Esta é a nossa casa. E quando eu estiver na minha casa, esta casa não deixará de ser a nossa. Principalmente para a minha filha". Luna é a menina mais crescida do lar: é como fosse uma educadora, adora as outras crianças, adormece-as, faz-lhes companhia, "é o porto seguro" delas. "Tem as suas atividadezinhas", a escola, a catequese, joga à bola com os rapazes, toda a gente a conhece, é muito sociável (puxou à mãe). "É uma criança feliz. Agora está na fase de aparvalhar", diz, a derreter-se.
Sem falsas modéstias e com a experiência de quem anda cá há sete anos (tem 35, é caso único na instituição), Vanessa vê-se como "o pilar da casa", sempre pronta a pegar no escudo protetor ou a fazer de guia. "Qualquer coisa que as doutoras precisam é comigo que contam. Quando precisam de algum recado sou eu que faço. Quando é preciso acompanhar alguma menina a algum sítio, sou eu que acompanho", diz. "Às vezes quero fazer entender às meninas que o que fazemos aqui é como se estivéssemos em nossa casa. Eu, quando saio do meu trabalho, sei que tenho de cozinhar, tenho roupa para pôr a lavar ou passar a ferro. É uma lida da casa. Se não nos ajudarmos umas às outras, está tudo errado". Não é por estarem numa instituição que têm de ter "a papa feita", diz, com a convicção que a fez estudar até ter nas mãos o certificado de auxiliar de saúde. "Temos de aprender a ser desenrascadas".
"Precisava de apoio e vim para cá"
Na quinta-feira em que falámos com Iolena, passava exatamente um ano desde que chegara ao lar. Está hoje bem mais adaptada. Tem 25 anos, quase 26. Veio de Angola para Portugal há sete, fim da adolescência. "Vim para estudar e fazer a minha vida. Não foi fácil deixar familiares e amigos. E a adaptação aqui [na instituição] também não foi nada fácil. É totalmente diferente da minha antiga realidade", conta a jovem, uma das muitas oriundas de países africanos que o Lar Luísa Canavarro tem acolhido nos últimos tempos.
"Vêm para Portugal sozinhas para estudar e entretanto, durante o percurso, engravidam. Obviamente ficam numa situação difícil, porque não têm retaguarda familiar e precisam de um apoio nestes primeiros tempos após o nascimento da criança", explica Daniela Maia, diretora técnica da instituição, responsável por gerir todos os processos de acolhimento. Noutros casos, são meninas retiradas das famílias ou que vieram de outras instituições e cuja autonomia não correu bem porque não têm retaguarda familiar.
Antes de viver em casa de uma tia, em Gaia, de onde veio para o lar, Iolena estava num quarto arrendado com o ex-namorado, pai de Bryan, o bebé de 11 meses que segura nos braços, irrequieto. Está sentada no chão da sala das crianças enquanto não são seis e meia, hora do jantar. Quando se viu sozinha com o filho na barriga e a vida às costas, foi bater à porta de juntas de freguesia e da Segurança Social para pedir ajuda. E, por fim, acabou a tocar à campainha do 293 da Rua de São Brás. "Precisava de apoio e vim para cá", conta.
A ajuda que Iolena recebeu no lar desde o princípio, ao longo de uma gestação muito agitada e depois de um parto que levou ao internamento do bebé, foi essencial. "No início eu tinha medo de lhe dar banho", conta. Mas o medo passou, as complicações também e agora Bryan é um bebé "cheio de saúde", sempre a mexer-se e a brincar com as outras crianças, enquanto as mães põem a conversa em dia depois do trabalho e da escola, antes do horário de recolher.
Iolena tem muitas saudades de Angola, sobretudo da família e da comida - "a daqui é boa, mas é diferente". Mas o futuro é em Portugal, espera. A estudar contabilidade no Instituto Politécnico da Maia, quer terminar o curso e conseguir ter independência financeira para alugar uma casa para si e para o filho.
"Tratamo-nos todas por tias, somos como irmãs"
Andreia chegou ao lar duas semanas depois de a filha nascer, já lá vão três anos. Viu-se numa cama de hospital com uma bebé ao colo e sem colo para onde voltar. Regressar a casa da mãe não era opção, por isso fez o que podia para ter Leonor nos braços: "Eu queria ficar com a menina, deram-me a hipótese de vir para aqui, aceitei logo e passadas duas semanas vim", diz a jovem de 22 anos. O início foi duro. Fez-se mãe enquanto se afastou da sua. "Ainda era muito nova, deixei os estudos para trás, foi uma situação complicada porque naquela altura eu não estava preparada. Tinha nos meus planos ser mãe aos 23/24 anos", lembra. Mas com o apoio "das doutoras" e a "força" que a filha lhe dá para se levantar todos os dias vai superando os desafios. Chegada a fase dos três anos de Leonor, o maior desafio é saber-se impor para que a menina saiba ouvir um não. "Muita gente romantiza a maternidade, mas é complicado. Não é fácil ser mãe".
E também não é fácil chegar a uma casa que ainda não é a sua. "Eu estava habituada a sair, a ter uma rotina diferente. Tive de habituar-me à rotina do lar". Aos horários, às regras, às pessoas. Mas o acolhimento que encontrou - para si e para a filha - apaziguou-lhe o coração a bater por dois. Dá um exemplo: "Temos uma pediatra que vem aqui todas as quintas-feiras. É bom, não temos de ir sempre com a criança às urgências e apanhar outras doenças lá. Já é uma grande ajuda."
"Hoje em dia gosto de estar aqui, isso é o principal. Tratamo-nos todas por tias, somos como irmãs. A gente ajuda-se umas às outras", diz sobre as colegas de casa que não escolheu mas de quem aprendeu a cuidar. Durante a semana, divide com elas os problemas, as conversas, as tarefas. Aos fins de semana, vai ao parque passear com a filha ou a Castelo de Paiva visitar a mãe, a avó e as primas, para matar saudades e para a Leonor conhecer a família. Nunca se sentiu presa: "Pelo contrário, sinto-me livre".
A terminar o curso de Geriatria numa escola profissional em Ramalde, no Porto, e em período de estágio, Andreia - que rouba um beijo a Elisa, funcionária que acaba de chegar ao turno da noite - quer depois procurar trabalho e "tentar arranjar uma casa" para viver com a filha.
Em tempos de crise no acesso à habitação, tentar é mesmo o verbo. "É neste momento o nosso maior problema. As nossas meninas em processo de autonomia, que já poderiam sair e ficar com uma vida equilibrada e estável, não conseguem precisamente porque não têm uma habitação que possam pagar", explica Daniela Maia, diretora da equipa técnica do lar, que atualmente conta com uma lista de espera grande por causa dos atrasos nas autonomizações das jovens que acolhem.
"Somos também uma escola de mães. Ensinamos estas meninas a cuidar dos seus bebés, muitas vezes dando-lhe aquilo que não receberam"
Numa tarde de sol, no jardim da casa de acolhimento, que conta com 15 quartos (um para cada mãe e filho), a responsável, formada em Psicologia e especializada em intervenção social na infância e adolescência, partilha com o JN que "gostava que a instituição fosse vista como a casa dos pais, que depois transita para a casa dos avós".
"Enquanto as meninas estão connosco, nós orientamos todo o conjunto de fatores, da saúde à situação profissional. E somos também uma escola de mães. Ensinamos estas meninas a cuidar dos seus bebés, muitas vezes dando-lhe aquilo que não receberam. Por isso, acabamos por ser a casa dos pais", descreve. Depois, à medida que as jovens e os filhos crescem, a instituição transforma-se na "casa dos avós", dando-lhes um "apoio de retaguarda".
Aqui há horários para levantar, para as refeições e para deitar. Com flexibilidade, tendo em conta as situações individuais, mas garantindo momentos de convívio e a criação de rotina, "que é muito importante para estas jovens". Além disso, cada menina é responsável pela limpeza e organização do seu quarto e por desempenhar algumas tarefas domésticas de forma rotativa. "Tentamos sempre que elas participem um bocadinho, não sobrecarregando o dia delas, porque muitas estão a trabalhar ou a estudar e, portanto, têm de ter tempo para se dedicar aos seus filhos e às suas coisas. Mas tentamos que elas sintam que existe uma corresponsabilidade na estadia", aponta Daniela.

