Linha da Beira Alta: regresso do comboio é “um pequeno presente num grande embrulho”
A linha da Beira Alta renasce mais um bocadinho depois de amanhã, com a reabertura do troço entre Mangualde e Celorico da Beira. Praticamente três anos depois do arranque, a empreitada está concluída, garante o Governo, sem se comprometer com uma data para a reposição da circulação no total da via.
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“Ficou concluída a obra de construção civil e agora vamos iniciar os passos para a certificação e abertura comercial”, disse o ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, durante uma visita técnica à linha ferroviária da Beira Alta, entre as estações de Mortágua e de Pampilhosa, a 31 de março. A remodelação, estimada em 600 milhões de euros, ficará por 675 milhões, mas certificação deverá demorar “alguns meses”, acrescentou.
“A indicação que tínhamos, presidentes de Câmara, era que a linha estaria pronta no final de março. Sei que ainda há troços, taludes e túneis, em fase de acabamento”, disse o presidente da Câmara de Santa Comba Dão, Leonel Gouveia. “O que nos tinham dito também é que era uma questão de um mês para adaptação dos maquinistas e que no final de abril teríamos a linha finalmente com passagem de comboios”, acrescentou o autarca, surpreendido com a hipótese, apurada pelo JN, de a linha abrir até fim do verão.
“Formalmente, não tenho essa indicação. Como sou crente, acredito que haja bom senso e que antes desse período de quatro meses a linha esteja naturalmente em funcionamento”, reagiu Leonel Gouveia. "Espero que esse timmig seja encurtado”, acrescentou o autarca, que preside também à Associação Municípios da Região do Planalto Beirão.
“Aquilo que se pede é que concluam uma obra que já era para estar concluída há imenso tempo, desde logo porque estão a prejudicar todo o tecido empresarial e industrial da região, mas também as pessoas, que já sofrem pelo facto de não terem transportes públicos como têm os grandes centros”, reagiu o presidente da Câmara de Mangualde, Marco Almeida. “Espero, que para bem das pessoas e das empresas desta região, que a reabertura total seja para breve. Ano após ano, as pessoas são prejudicados pelas assimetrias que são constantemente colocadas a estes territórios”, acrescentou.
Ligação fulcral no chamado Corredor Internacional Norte, a linha da Beira Alta ganha, depois de amanhã, aproximadamente 36 quilómetros, com a retoma da ligação entre Celorico da Beira e Mangualde, fechada desde o início das obras de requalificação, há quase três anos. "É uma meia satisfação. Hoje temos metade da linha funcional", comentou o presidente da Câmara de Mangualde. "É um grande embrulho para um pequeno presente", acrescentou Marco Almeida.
"Infelizmente, isto é uma obra que está com anos de atraso e tem causado um prejuízo enorme quer às empresas quer aos cidadãos deste concelhos atravessados pela linha", acrescentou o presidente da Câmara de Santa Comba Dão. "Já foram apresentados muitos prazos para finalização da obra e entrada em funcionamento, e muito sinceramente, lamento em nome dos municípios", disse Leonel Gouveia.
"Estão a empurrar as pessoas para Espanha"
Encerrada para obras a 19 de abril de 2022, a empreitada tinha um prazo previsto de nove meses, apontando a reabertura para janeiro de 2023. Dois anos e três meses depois, e entre sucessivos adiamentos, foram abertos três troços, o mais recente a 25 de novembro, entre Celorico da Beira e Guarda, e daí para Vilar Formos. Em quatro meses, circularam cerca de 2500 passageiros nesta linha, segundo dados da CP fornecidos ao JN. Fica a faltar o troço entre Mangualde e Pampilhosa, que vai repor “toda a condição de circulação” da Linha da Beira Alta, acrescentou a empresa.
"Estão a empurrar as pessoas para Espanha, porque não nos deixam ir para Coimbra ou para Lisboa. A fronteira saiu de Vilar Formoso para vir para Mangualde. Estamos limitados na circulação", disse Marco Almeida. Uma opinião com respaldo noutro concelho há três anos a ver passar autocarros nas estações de comboios. "O que faria sentido era a ligação da Pampilhosa ter avançado na direção contrária ao que foi feito", para Coimbra e daí para o resto do país, disse Leonel Gouveia, embora salientando a importância da linha para Espanha.
O presidente da Associação Empresarial de Mangualde (AEM), Pedro Guimarães, reconhece a necessidade da ligação a Coimbra, mas, ao lidar mais com empresas, olha para um cenário mais vasto. "Se pensarmos na macroeconomia de um país, obviamente o que interessa é a reabertura total da linha", acrescentou, sem discriminar sentidos de avanço.
Pedro Guimarães lembra "três anos bastante desgastantes" de viagens de autocarro em substituição dos comboios. "O serviço não podia ser melhor", assevera, mas "depois de tantos anos ligados, esta interrupção tão morosa e tão penosa do comboio foi complicada por todos os motivos", acrescentou o presidente da AEM.
"Todos os municípios aqui à volta, mesmo os que não são atravessados pela linha, como Tondela e Tábua, têm o mesmo sentimento de alguma indignação" relativamente ao atraso da obra, diz Leonel Gouveia. Autarca de Santa Comba Dão preside à AMRPB, que além dos concelhos já mencionados incluiu ainda Mortágua e Carregal do Sal, uma localidade que deve a existência ao ramal ferroviário. Segundo aquele autarca e dirigente, "é difícil quantificar o prejuízo”, mas não duvida que o atraso nas obras da linha "causa um enorme constrangimento."
"Esta linha é o pior exemplo do que é a gestão de uma obra"
Pedro Guimarães concorda que é difícil saber os números ao certo, lembra que tem sido "complicada" a falta de comboios, tanto para o turismo, o comércio e a indústria do concelho. "A principal linha ferroviária parada tanto tempo, obviamente prejudicou o país não há dúvidas disso", sinalizou o presidente da AEM.
“Esta linha é o pior exemplo do que é a gestão de uma obra. É completamente injustificável o que se passou relativamente aos timmings. É uma obra pública que não é um exemplo para nada”, acrescentou o autarca de Santa Comba Dão, apoiado pelo empresário de Mangualde. “Tenho vergonha de explicar isso em três palavras, que são: bem-vindo a Portugal”, disse Pedro Guimarães. "Há um prejuízo do país incomparavelmente maior que o prejuízo para a nossa região", acrescentou.
“Estamos a falar do principal eixo ferroviário para a Europa. Estamos a falar de uma concelho que tem uma forte marca do ponto de vista empresarial e industrial”, argumentou Marco Almeida. O município é a berço da maior empresa de transportes do país, e das maiores da Ibéria, a “Patinter”, que que emprega cerca de 1200 pessoas, e sede de uma fábrica de automóveis da Peugeot Citroën Automóveis Portugal, S.A, do grupo Stellantis, onde trabalham cerca de mil pessoas. “Temos 56 empresas de transportes logísticos - para muitas delas a ferrovia tem uma importância grande do ponto de vista da entrega de mercadorias”, acrescentou o autarca.
“A linha férrea casada com os transportes rodoviários são a solução perfeita para tudo. A linha férrea traz o grande pacote que depois é distribuído onde a ferrovia não chega e cria-se muita sinergia, poupa-se imenso dinheiro”, argumento Pedro Guimarães. Otimista, diz que o segredo da região é adaptar-se às dificuldades “ de sorriso nos lábios” e que assegura que as empresas souberam “reinventar-se” nestes anos sem ferrovia e de incerteza.
Marco Almeida disse que “as explicações foram dadas sempre, apenas e só, pela IP, nunca pela tutela” e que “foram compreendidas”, no que diz respeito as atrasos por falta de mão de obra e materiais. “Mas também é verdade que as pessoas desta região já estão cansadas de tantas explicações para o adiamento de tantas obras prometidas ao longo destes anos”, acrescentou o autarca de Mangualde.
IP3 é outro exemplo "do completo desprezo pelo Interior"
Ao lado, em Santa Comba Dão, o sentimento é idêntico. O atraso “é o reflexo daquilo que é a importância que é dada ao interior, por sucessivos governos e pela própria IP”, disse Leonel Gouveia, sinalizando que a via férrea não é o único engulho nas comunicações. “Efetivamente, temos um outro problema, que é o IP3”, via rodoviária que liga Coimbra a Viseu.
“É um completo desprezo de sucessivos governos, de cores partidárias diferentes”, diz Leonel Gouveia. Fazendo “mea culpa” e reconhecendo “uma acerta incapacidade de reagir dos municípios envolvidos” , o autarca critica o primeiro-ministro, Luís Montenegro, que há dias foi a Tondela anunciar a consignação da empreitada de reabilitação do troço do IP3 entre Santa Comba Dão e Viseu. “Uma perfeita manobra propaganda política. A obra já estava contratualizada. A empresa que vai fazer a requalificação já estava no terreno”, disse.
Considerando a cerimónia “um fait-divers”, Leonel Gouveia sustentou que o que a consignação apresentada “foi fruto do trabalho anterior” e que “este governo nada fez”, já de olhos na estrada. “Agora, esperemos que o troço Santa Comba-Souselas avance rapidamente”, acrescentou o autarca, considerando que “é inconcebível não haver uma ligação por autoestrada entre duas cidades com a importância de Coimbra e Viseu”, ao fim de tantos anos de investimento em rodovia no país.
“Enquanto continuarmos a olhar para a centralidade, paras a Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto e continuarmos a dividir o pais em dois, em grandes centros e os pequenos centros, dificilmente vamos conseguir ter as oportunidades que os outros têm”, lamentou Marco Almeida. “Não é graças a esta falsas expectativas que sistematicamente têm sido criadas às pessoas desta região que não vamos continuar a dar o nosso contributo”, argumentou o autarca de Mangualde, sem “deixar de lamentar que, ao fim de tantos anos, ainda continuem a dividir o país ao meio”, entre Litoral e Interior.