Casa de Aníbal Augusto Milhais, herói improvável da I Guerra Mundial, foi transformada num centro interpretativo. Fica na aldeia onde nasceu e criou nove filhos, em Valongo, Murça.
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Como um soldado raso mobilizado para a primeira grande guerra, a partir da aldeia de Valongo, em Murça, se torna herói: corria o dia 9 de abril de 1918. Flandres, Bélgica. Quando todas as tropas aliadas retiraram, Aníbal Augusto Milhais ficou para trás. Fez orelhas moucas à ordem de um superior, pegou numa metralhadora e enfrentou sozinho uma ofensiva alemã. Movimentou-se rapidamente nas trincheiras enquanto disparava. Os germânicos ficaram iludidos. Pensaram que enfrentavam muitos, quando afinal era só um. Foram repelidos por três vezes, mas acabaram por contornaram a posição. Aníbal ficou para trás e acabou salvo, num pântano, por um oficial médico escocês.
Os atos de bravura do pequeno soldado valeram-lhe a mais alta condecoração militar nacional - a Ordem de Torre e Espada. "Tu és Milhais, mas vales milhões", disse-lhe o comandante Ferreira do Amaral, aquando do seu regresso à base, por ter permitido salvar todos os camaradas portugueses e escoceses que estavam naquela posição, na Flandres.
O agricultor analfabeto de metro e meio, que nunca tinha saído de Murça, exceto para ir para a guerra, lutou simplesmente por bravura. Mais tarde, contando a sua história na Batalha de La Lys terá dito: "Se eu tenho de morrer aqui não há de ser com uma bala nas costas".
A Câmara Municipal de Murça reabilitou, finalmente, a casa onde o herói nacional viveu, e transformou-o num centro de memória de todos murcenses que participaram na guerra. É inaugurado ao início da tarde desta segunda-feira pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
"O soldado Milhões simboliza todos os que são heróis, de alguma forma, na vida", salienta o vice-presidente da autarquia, António Marques, explicado que o núcleo museológico será "uma casa interativa e não um museu no seu formato tradicional".
António Marques destaca ainda o "enorme potencial turístico, cultural e de atratividade para o concelho" do nome do soldado Milhões, frisando o "orgulho de que seja natural de Murça o único que o país tem".
A casa de Aníbal Augusto Milhais foi cedida pela família. A recuperação era reclamada há muitos anos. A transformação do imóvel no Núcleo Museológico Soldado Milhões custou cerca de 300 mil euros, financiados em parte pelo programa Valorizar. Como a casa estava em avançado estado de degradação, foi necessário demoli-la e voltar a construí-la, preservando os traços originais exteriores.
Lá dentro existe agora um espaço largo com fotografias, objetos (originais e réplicas) e equipamentos de multimédia que vão permitir a quem o visite "viajar" à época em que viveu o soldado Milhões.
"Fez-se justiça"
António dos Santos Milhões é o único dos nove filhos do Herói Milhões que ainda é vivo. Está prestes a fazer 90 anos. Nasceu na casa que agora foi transformada em museu e que esta segunda-feira vai ser inaugurado por Marcelo Rebelo de Sousa. Diz que "ficou tudo muito bem", mas lamenta que a obra não tenha sido feita, no mínimo, "há quatro ou cinco anos", para que "outros irmãos pudessem ver a casa recuperada". "Assim só a vejo eu", frisa, já que outros faleceram, entretanto.
O filho de António e neto de Aníbal, Carlos Milhões, confessa que "é um orgulho muito grande ter a casa recuperada", sem esconder "a tristeza de ver o avô esquecido entre 1970 e 2023". Mesmo no cemitério de Valongo de Milhais, onde foi sepultado, "tinha uma campa como um cidadão normal, sem qualquer referência". Agora, "finalmente fez-se justiça" e "vai ser bom para o concelho de Murça".
Do pai, António lembra "um homem que trabalhou muito, à jorna, para criar os filhos". Naquela época de vastas necessidades, "um quilo de arroz e outro de massa tinham de dar para um mês". O resto da alimentação "era o que dava a terra".
Valongo de Milhais
A aldeia de Valongo, em Murça, passou a chamar-se Valongo de Milhais em 1924, em homenagem a Aníbal Augusto Milhais, o único soldado português condecorado como herói nacional. Morreu com 75 anos em 1970.
A Câmara de Murça pretende criar um trilho pedestre de cerca de seis quilómetros pelos percursos percorridos antigamente entre a localidade e a praceta Herói Milhões, localizada no centro da vila de Murça.