Memórias da velha Fábrica de Fiação e Tecidos: "Não podíamos estar em casa, havia pobreza"
Antigos operários da velha Fábrica de Fiação e Tecidos dão testemunhos para o arquivo histórico do têxtil.
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Os fios das recordações cruzam-se, emaranham-se. Avança-se e recua-se na linha do tempo que correu veloz e os lançou na terceira idade. Da velha Fábrica de Fiação e Tecidos de Santo Tirso, onde se reformaram da labuta operária de uma vida, já não sai pano algum: o chão e as paredes são os mesmos, como as colunas férreas, mas ali moram hoje empresas tecnológicas.
Resistem ainda as memórias do têxtil, que tantas vidas alinhavou no Vale do Ave e que a autarquia tirsense tenta agora enriquecer com os testemunhos de quem se dedicou à antiga Fábrica do Teles.
Recorda-se o início difícil nos serviços mais pesados, como o "aterro", onde se trabalhava nas obras, ou o "perfume do senhor Teles, que se sentia a dois quilómetros". Imortalizadas pelo projeto "Memórias do trabalho", as recordações de quem dedicou a vida à têxtil fundada em 1898 são recolhidas por Nuno Olaio, o historiador do Município que coordena a iniciativa.
Palmira e Francisco
Lutaram por direitos na fábrica
Palmira Baltar é, desde sempre, mulher de bravuras. De olhos grandes, claros e vibrantes, ilumina o rosto com um sorriso largo a cada peripécia que resgata do arquivo da memória. Tem 77 anos e um olhar que chispa jovialidade. Quer falar quase de rajada, ou perde-se nas meadas entrelaçadas das lembranças, porque, com a idade, a cabeça já não é a mesma, encolhe-se.
Francisco, o homem com quem se casou há mais de meio século, olha-a com admiração. Ambos começaram a trabalhar ainda meninos: ela, a "servir" como criada interna, aos 12 anos; ele, aos 13, na Fábrica do Teles, onde entrava todos os dias, antes do nascer do sol - "vinha por aí abaixo enganchado no braço da minha mãe, a dormir"- , lembrando que começou por fazer serviço de trolha. "Não podíamos estar em casa, porque havia muita pobreza", atalha Palmira. A escola ficara para trás, e foi a trabalhar como gente grande que acabaram de crescer. Casaram cedo. Foram (e são) o esteio um do outro.
Ela era adolescente quando cumpriu o "sonho de ir para a fábrica". Entrou na fábrica do Malhado, onde teve de bater-se por direitos de trabalhadores ainda antes da Revolução dos Cravos, e por eles teve de rumar, um dia, "sem saber caminho nem carreiro, ao sindicato, no Porto".
"Era uma mulher, mas, quando vi que tinha de lutar... Era um bocado corajosa para o que calhasse. Ainda hoje sou aventureira", ri Palmira, a quem o 25 de Abril apanhou já na Fábrica de Santo Tirso, dando-lhe a liberdade para se tornar delegada sindical.
Tal como o marido, que ainda haveria de tornar-se dirigente dos distritos do Porto e de Aveiro, e, por conta disso, ser alvo de "perseguições" - levou "cacetadas" e até conseguiu escapar a uma bala, que fez "um furinho" no assento da lambreta em que seguia, no Porto.
"Quando se formou o movimento sindical cá dentro, defendíamos os trabalhadores e já não se metiam tanto com eles", diz Francisco Costa, numa alusão aos "castigos" de que os operários eram alvo sempre que contestavam algo.
"Os trabalhadores não valiam nada", atira o antigo funcionário. Triunfante, a mulher atravessa-se logo: "Mas, com o 25 de Abril mudou tudo. Começou a haver mais respeito pelas mulheres". Palmira, que "não percebia o que era o comunismo, mas sabia o que era o fascismo", avança até ao presente para concluir que "ainda há machismo".
Joaquim e josé
Início de picareta nas mãos, a cavar
Como Francisco, também Joaquim Roriz começou por fazer trabalho de trolha e pedreiro na Fábrica do Teles. Tinha pouco mais do que 10 anos. "Não foi fácil: saí da escola primária e vim logo para cá. Tive de vir; naquela altura, era assim. O pai mandava e a gente fazia. Fui para moço de trolha. Toda a gente tinha de passar por este calvário".
O rapaz ainda foi "moço de recados" antes de conquistar um lugar no escritório. Tinha a 4ª classe; o pai afligiu-se e disse-lhe que "não era capaz". Joaquim provou que estava enganado, e trabalhou no escritório até ao dia em que a fábrica fechou, falida, em 1990. Aprendeu contabilidade. Na década de 1970, quando chegaram à empresa os primeiros computadores, teve de desenvencilhar-se. Aos 84 anos, Joaquim Roriz revê a imagem do antigo gerente, António Teles, que "todos os dias ia ver a fábrica toda".
Quase uma década mais novo, José Azevedo evoca os quatro anos na antiga têxtil, onde entrou com 14 anos, "para fugir de alfaiate", o ofício paterno. Tal como os colegas, foi para o "aterro". "Era pesado: passei da agulha para uma picareta, a cavar o chão. E eu novito, ainda estava a começar a crescer". Estende as mãos e recorda: "passado dois dias, eram bolhas enormes".
Depois de passar por "algumas secções" da fábrica, acabou por mudar a agulha e tornou-se um dos "grandes alfaiates de Santo Tirso", como o descreve o historiador Nuno Olaio.
Projeto
100
operários acederam ao apelo da Câmara e aceitaram dar o testemunnho e partilhar histórias e documentos que vão compor o projeto "Memórias do trabalho"
Exposição
Registadas em áudio ou vídeo, as memórias vão integrar o Arquivo Histórico da Indústria Têxtil, no Centro Interpretativo da Fábrica de Santo Thyrso, e haverá uma exposição.
Recolha decorre
Iniciada em 2019, a recolha de depoimentos ainda decorre. Os interessados podem contactar a autarquia pelo email museus@cm- stirso.pt ou telefone 252 809 120