Mãe do mestre do "Letícia Clara" ainda não se recompôs do susto. Rui terá nadado mais de sete quilómetros durante nove horas agarrado a uma boia.
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"Ai, Senhor! Ai, Mãe Santíssima, que é o nosso Rui!". As palavras de aflição saíram da boca de Lurdes Ramos. Era uma da manhã. Estava na cama. Acordou com a notícia na televisão. "Foi uma aflição! Pensei que morria quando ouvi a primeira notícia do naufrágio!", conta, nas Caxinas, Vila do Conde. A essa hora, já Rui Camaço, 42 anos, estava a salvo no hospital. Falou com a nora, mas o coração de mãe nunca mais dormiu. Segundo informações do armador, o filho havia estado nove horas à espera de socorro. Nadou mais de sete quilómetros "num mar gelado". Perdeu três companheiros. O naufrágio do "Letícia Clara" foi, sexta-feira, ao largo da praia do Pedrógão, em Leiria.
Rui Camaço continua internado no serviço de urgência do hospital de Leiria "em observação", adiantou fonte do hospital ao JN. Chegou a terra "exausto, em hipotermia e em choque". Os outros três tripulantes - dois indonésios e um marroquino - continuam desaparecidos, apesar das buscas.
dois golpes de mar
"Não estava na hora dele", atira a mãe, erguendo as mãos ao céu em sinal de gratidão. Sem a quererem preocupar, nora e filhos esconderam a Lurdes a tragédia e pouparam-na às largas horas de sufoco.
"Falei com ele às 8 horas. Disse que já vinham para terra [porto da Nazaré]. Às 9.45 horas, tentei ligar e o telemóvel já estava desligado", contou neste sábado ao JN o armador, Nelson Morgado. O "Letícia Clara" terá naufragado pouco depois das 9 horas, a quatro milhas (7,4 quilómetros) da costa, ao largo da praia do Pedrógão.
A Nélson e à família, Rui Camaço contou que "uma volta de mar" fez tombar o barco. Ao leme, o mestre ainda tentou "contrabalançar e acelerar a fundo", mas uma segunda onda forte virou a embarcação, sem lhe dar tempo para pedir socorro. Rui e o pescador marroquino ficaram em cima do barco até este afundar. Depois, decidiram nadar. Os dois indonésios, que estariam a dormir, terão ficado no interior do barco.
"Ele diz que o pescador marroquino vinha a nadar com ele, mas depois, no meio do mar e com as ondas, deixou de o ver", conta Lurdes. Rui Camaço apareceu, junto à costa, agarrado a uma boia de esferovite usada para sinalizar as redes. Foi resgatado pela Polícia Marítima às 18.15 horas, na praia de Pedrógão.
Lurdes Ramos só soube horas mais tarde. Mulher, mãe e sogra de pescadores vive em constante sobressalto. "A gente vai à janela ver o tempo de noite e só pensa neles", conta. Rui é pescador desde os 14 anos. Andou ao mar em Espanha, nos mares gelados do norte. A mãe não tem dúvidas de que foi a experiência que o salvou.
"Barcos e madeira há muitos. Só queria era que as pessoas aparecessem", diz Nélson Morgado, referindo-se aos três tripulantes desaparecidos. O "Letícia Clara", admite, "não tinha seguro, por falta de um papel", mas "todos os tripulantes tinham seguro de acidente de trabalho". O armador já avisou a empresa de recrutamento indonésia e está agora a tentar localizar a família do marroquino através da embaixada. A esperança de os encontrar com vida é muito pouca, mas Nélson queria, pelo menos, poder devolver os corpos às famílias. Lurdes também. Reza, agora, por isso. Talvez isso trouxesse alguma paz ao "seu" Rui.