Luísa e António Marques, da Picota, perderam a casa e todos os haveres nos fogos de Monchique em 2018. Estão há um ano a viver em casa emprestada. "O nosso futuro continua enegrecido", dizem ao JN
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Maria Luísa Marques, 55 anos, monchiquense, perdeu a casa e tudo, todos os haveres. Ela vai marejar várias vezes a repetir esta frase: "O nosso caso é o pior. De todas as casas que arderam há um ano, o nosso caso é o caso pior".
Nos fogos de agosto de 2018 na serra de Monchique, Algarve, o maior fogo do ano registado em Portugal e na Europa - 27 mil hectares de floresta e terrenos agrícolas pulverizados -, houve 52 casas que arderam total ou parcialmente. Mas, mais de um ano depois, o processo de recuperação estatal, para o qual existem 2,3 milhões de euros, está muito, muito atrasado. Dessas 52, mais de metade - 28 casas - têm ainda os processos parados pela Autarquia para aprovação de licenças, havendo depois um número indeterminado de habitações a recuperar com dinheiros do seguro, revelou o autarca de Monchique, Rui Miguel André. "Não compreendemos. Passou um ano. 365 dias inteiros. Eu sei, eu conto os dias todos os dias", diz Luísa aos supetões e levanta os óculos para limpar os olhos.
Ela está sentada na sala de estar do T2 com o marido, José António, 63 anos, que está a seguir na televisão as bicicletas da Volta a Portugal, e está ainda ali com ele no sofá a cunhada, Roquelina, 76 anos, toda vestida de preto e ela tricota fios branquinhas de renda que hão de ser um par de carapins de bebé. Eles sentem-se estranhos: aquela não é a casa deles; é uma casa emprestada pela paróquia no centro de Monchique e estão ali porque a casa deles ardeu. "Ardeu-nos tudo, tudinho, a casa, os móveis, as camas que eram novas, as nossas roupas todas, não temos nada nosso que vestir, andamos aqui com roupa emprestada", e Luísa pára para não chorar. E depois engole, recupera o ar, continua: "Arderam as fotografias da família, ardeu o dinheiro que tínhamos poupado e estava guardado numa gaveta, ardeu o ouro, era o ouro da família, derreteu no calor, não encontrámos nada no escombro, ficamos sem nada, nadinha, até arderam as duas motonetas do meu José", diz Luísa com a voz a sumir. "E ainda não recuperamos o nosso orgulho nem a nossa dignidade. Como é possível? Passou um ano e nada! Como se esquecem de nós?", e José deixa os olhos pousados na Luísa como se a estivesse a amparar. E comenta: "O nosso futuro está enegrecido".
A casa deles, branquinha, baixinha, rodeada de plantas e flores, com uma grande buganvília no pátio a florescer purpurinas, fica no alto da Picota, na serra de Monchique ancestral. A vista que dali se vê é de estarrecer: os belos vales a ondear, nos dias limpos avista-se até Portimão, vê-se a marina, vê-se Silves, vê-se Lagos e o mar, vê-se que a pretidão do chão já está a esverdear.
"Só queremos ir para casa"
Mas a casa deles ardeu, "é uma ruína só, é um susto, está na mesma como há um ano, como é que pode ser, não sabem que aqui não estamos bem? Só queremos ir para a nossa casa", diz comovida Roquelina.
"Nunca devíamos ter abandonado a casa, tínhamos água, temos braços, éramos capazes de a salvar", diz José com reticências, "mas a GNR embirrou que tínhamos de sair, a bem ou a mal, e nós saímos, saímos para perder tudo".
O processo de recuperação da casa parece ter emperrado do lado do Estado, diz Luísa. "Na Câmara dizem-nos que por eles está tudo tratado, que é lá no Governo que estão a empatar. A gente sabe lá! Não nos sabem dizer sequer quanto tempo aqui vamos ficar", e a mulher mostra papéis tremidos do processo que foi buscar. De repente calam-se todos, os olhos cravados no chão, fica só no ar o relato da Volta que é expelido da TV. E Roquelina diz então muito baixinho: "Esta não é a nossa casa, não temos as nossas coisinhas, parece que estamos a viver no ar, que nunca mais vamos ter os pés na terra", e nisto Roquelina apanha uma muleta, ergue-se do sofá, revela que lhe falta uma perna, e sai dali da sala muito devagarinho, num andar tremido, para não vermos que está a chorar.
SAIBA MAIS
Ilegalidades
"Vários processos de recuperação das casas ardidas estão parados por ilegalidades que têm ainda de ser regularizadas. E o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas emitiu vários pareceres negativos", revelou o presidente da Câmara de Monchique, Rui Miguel André.
Enquadramento legal
Muitas casas não terão condições para vir a ser licenciadas por falta de enquadramento legal para construir ou reabilitar em áreas protegidas. O protocolo de cooperação entre a administração central e a Autarquia foi assinado em dezembro do ano passado, quatro meses após os fogos.
Três opções
Há famílias que optam por não recuperar o que ardeu e decidiram comprar noutro local. A opção está prevista no acordo com o IHRU, que dá a escolher entre recuperar a casa, compra de equivalente ou pagamento da renda ao lesado até dez anos.
Turistas voltaram em força à vila termal
Maria Caciano Neves está sentada no fresco pátio interior da Albergaria do Lageado, na vila termal das Caldas de Monchique, Algarve, e a sua serenidade, ela que veste um vestido floral primaveril, diverge do que está a dizer. "A minha filha chegou aqui de cara apavorada, numa agitação muito grande, e só dizia "já não dá tempo, mãezinha, já não dá para fugir, vamos ter que nos meter todos debaixo de água na piscina!". Eu fiquei congelada, sem saber o que fazer, ir para a piscina?! Estávamos todos muito desorientados, com muito medo - foi o dia de maior medo das nossas vidas, sim, nunca vivemos nada assim".
A dona da albergaria de quatro estrelas fundada há 43 anos recorda aquele domingo de 5 de agosto quando o fogo começou e durante uma semana inteira devorou 27 mil hectares de verdura do concelho algarvio. "Foi pavoroso, o fogo roncava a descer pela serra abaixo, rapidíssimo, corrido pelo vento, um barulho assustador, um calor, mas afinal ainda conseguimos fugir e fomos em segurança para a casa da minha filha na Lagoa. Ficamos lá duas noites, só ao terceiro dia é que nos deixaram aqui voltar".
A Vila Termal, muito procurada por turismo sénior, é um encantador resort e SPA à volta do qual revolve toda a vida da povoação que em agosto se multiplica até aos mil habitantes, numa maioria de estrangeiros. Na altura, foi toda evacuada por ordem da GNR, todos os turistas saíram atarantados, não restou ninguém, era uma vila fantasma. Mas agora, faz hoje um ano que o fogo se extinguiu, as belas termas, com as suas ruas imaculadas de sombras recortadas por grandes acácias, ciprestes e bons sobreiros, são um oásis de sossego e bonança onde só se ouvem grilos, cigarras, conversas sossegadas e os pássaros.
"Agora estamos ótimos, estamos melhor, até", diz Maria Caciano a beber tranquilamente café, "para agosto já temos os 16 quartos esgotados. E setembro e outubro também. Este ano está a correr melhor do que em anos anteriores, até".
As termas ficam no fundo de um vale abrupto da serra de Monchique e se ali tem chegado o fogo a tragédia era inatacável. É uma realidade que o holandês Jan Jeroen, que há dois anos vivia em S. Paulo, no Brasil, conheceu e não esqueceu. "A serra continua cheia de cicatrizes, no entanto está a recuperar bem. Mas aquilo que vi em 2018, subi e desci os montes e vales da serra, andei por aí a ver tudo de jipe, era assustador, parecia que estava a andar na lua".
Quatro hotéis
O afável homem alto e loiro é o novo gerente das quatro unidades hoteleiras da Vila Termal que desde janeiro têm um novo dono, a Unlock Hotels, que adquiriu por 10 milhões o histórico empreendimento à Fundação Oriente, numa joint venture com a Sociedade da Água de Monchique. Está contente, Jeroen, os 103 quartos do boutique hotel estão esgotados até setembro e já há reservas até ao Natal. "Estamos a investir, a remodelar, isto que já era ótimo está a ficar melhor".