Histórias de coragem, fortuna e desgraça. Um universo feminino no submundo do grande tráfico de café, de gado, de divisas e do volfrâmio nazi.
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Schengen, da livre circulação de pessoas, bens e capitais, fez letra morta de Alcanizes, apagou as fronteiras mais antigas da Europa e extinguiu o comércio furtivo que, durante sete séculos, prosperou em aldeias e vilas raianas de Portugal e Espanha. Mas não extinguiu a memória de um fenómeno económico, social e político que deixou marcas indeléveis no Alto Minho. No salto do rio para a Galiza, tantas histórias de sucesso, de fortuna, mas também de desgraça, terminadas às mãos da Guarda Civil ou da PIDE.
Aí! Manda, hóstia! Margarida Fonseca, de 94 anos, sempre recordou a ordem do carabineiro da Guardia Civil, desde a primeira vez, "aos nove aninhos", que acompanhou uma tia na incursão ao trapicho, nos preâmbulos da Guerra Civil Espanhola. Foi como quem não quer a coisa e logo adquiriu a astúcia que lhe havia de servir para uma longa carreira. "Era pequenina, mas levava 20 quilos de café e ovos na saia, na mandrana. Levava tudo e mais alguma coisa. Para cá, trazia peixe, polvo, marisco e o que calhava", lembra esta mulher-emblema de Valença, assim recordada e citada em inúmeros documentários e arquivos concelhios.
A mandrana - saia e avental de forros, de cavidades e de intimidade feminina, nas quais mulheres adultas chegavam a transportar 40 quilos de mercadorias - foi a sobrevivência de muitas trapicheiras que, como Margarida, se viram cedo a lutar pela vida. "Nunca fui à escola. Éramos uma família muito pobre", historiou a terceira de dez filhos, ela própria mãe de dois, que teve de sustentar sozinha desde os 30 anos, quando enviuvou. "Vida dura. Tudo ao suor do rosto. Felizmente, nunca fui presa. Não fiquei rica, mas governei-me, em tempos difíceis", eternizam as memórias de Margarida.
Relatos
Como este - um dos últimos testemunhos vivos do que foi, durante décadas, a indústria mais proveitosa do Vale do Minho - sobram inúmeros relatos do comércio clandestino, que teve o auge no século XX das guerras. Em Valença, Salustiano Faria, de 70 anos, filho de trapicheira, viu-se, aos nove anos, iniciado neste universo feminino. "Era uma atividade de mulheres, que se faziam acompanhar dos filhos pequenos como transportadores de mercadorias e para distrair os guardas", diz o documentalista e historiador do comércio paralelo raiano.
"Nos anos 1950, Salazar e Franco abriram as fronteiras, porque faltava tudo dos dois lados. Era uma maneira de combater a miséria. O trapicho era legal, tinha regras, que as trapicheiras não respeitavam. Se podiam passar pela alfândega com cinco, levavam mais 35. Na maioria das vezes, as mercadorias passavam com uma moedita ao guarda. Em alguns casos, mais do que uma moedita. Mas isso sempre foi assunto tabu...", diz Salustiano.
Margarida também ouviu falar dessas tarifas hormonais. Um dia, foi mandada parar por um guarda, ainda a certa distância da alfândega. Como sempre, vinha de Tui com mais mercadoria do que a permitida, vergada pelo peso e pelo receio. Astuta, recuou. Que já ia. Parou e fez que estava a recuperar fôlego. Esperou por uma colega de ofício que vinha mais atrás. "Ela andava de calores com o guarda! E se ela passava, ele não ia mandar revistar-me. Eu era pobre, mas não me calava. E não servia de tapete", relembram as narrativas de Margarida, ela que, ironia da vida, após terminar a carreira de trapicheira, trabalhou como empregada de limpeza no Posto da Guarda Fiscal de Valença, já nos anos 1970.
Em muitos casos, os fiscais também fechavam os olhos a este pequeno contrabando de organização familiar. Porque eles próprios só tinham a beneficiar com a proliferação do comércio clandestino. De um lado e do outro da fronteira, o mercado negro solucionou muitos problemas sociais e engordou o património de muita gente.
Café torrado
E se havia alguma condescendência por estas pequenas redes informais, o caso mudava de figura quando envolvia o grande contrabando. Frequentemente, Valença tresandava a... café torrado! Era a mercadoria a arder nas caldeiras das locomotivas, quando os maquinistas, surpreendidos com a operação dos fiscais, se desembaraçavam da carga a toda a pressa.
O grande fluxo do contrabando decorria, contudo, nos sítios mais íngremes e isolados do Vale do Minho. De Caminha a Melgaço, ao longo de 70 quilómetros de raia ribeirinha, até à raia seca de Castro Laboreiro, aldeias inteiras traficavam mercadoria pesada. Na escuridão da noite, por trilhos, carreiros e regatos, à chuva, à neve, homens e animais carregavam o que podiam. O Estado Novo reforçou a repressão, mas o negócio prosperou, com a conivência da Guarda Fiscal, Guardia Civil e até da PIDE. Frequentemente, tudo se passava na presença discreta da "autoridade". Porque havia que pesar cargas e calcular "comissões".
Nos arquivos
Estas e outras histórias estão nos arquivos da Guarda Civil e da PIDE ou guardadas no Espaço Memória e Fronteira de Melgaço, um memorial aos homens e mulheres que, durante décadas, séculos, estimularam a economia raiana. Ali, tudo está catalogado como património cultural, porque o contrabando era ilícito mas não pecado.
Outra correspondência, desclassificada, dos ficheiros da PIDE, ilustra como o Estado Novo estava tão embaraçado com o tráfico de volfrâmio, picado à picareta, em minas mais ou menos avulsas. Portugal era um dos maiores produtores mundiais do minério usado no endurecimento do aço. A indústria de guerra nazi era o destino de cargas lucrativas, por rotas também vigiadas pelo súbito surgimento de turistas britânicos. Espiões de Sua Majestade, é claro.
Era também a época dos novos circuitos da emigração a salto e do tráfico de divisas, de ouro e de prata. Foi nessa altura que o génio lusitano falsificou, numa tipografia de Monção, o carimbo de Franco que atestava as notas de pesetas. Mais ou menos sofisticado, com mais ou menos restrições, o negócio prosseguiu até 1992, data da entrada em vigor do Tratado de Schengen. Até aí, aos anos 1970 e 80, e mesmo após Portugal e Espanha terem aderido à CEE, continuava a traficar-se tudo, em ambos os sentidos. Peles, azeite, sabão, tabaco, ouro, prata, cobre, marisco, peixe, até carros e camiões às peças.
"Eu já cheguei tarde", lamenta Fernando Pires, 67 anos, empresário de hotelaria em Castro Laboreiro. Emigrou para França, a salto, aos 16 anos. "Para fugir à tropa e ganhar dinheiro". Voltou aos 23 e abriu uma loja de materiais de construção. Mas o apelo era outro: gado, muita vaca, muita cabra. Muita banana das Canárias. "Se fiquei rico? Cheguei tarde", insiste.
Fernando concede que o negócio era lucrativo - "Houve épocas de ganhar 40 contos por noite" -, mas arriscado, sobretudo quando atravessava montes e vales com camiões atestados de porcos. Os faróis iam desligados, mas os grunhidos ecoavam pelos vales e podiam alertar a guarda. Solução: açúcar no focinho dos bichos e a viagem decorria em silêncio. Afinal, todos cobravam.