A vila onde todas as ruas vão dar ao mar mantém tradições seculares que eternizam a essência nazarena.
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O local é o mesmo, mas a paisagem fotografada por Henri Cartier-Bresson, Eduardo Gageiro e outros autores célebres, nas décadas de 50 e 60, mudou significativamente. Apesar de muitos afirmarem que a tradição se mantém viva, a maioria da população receia que, mais tarde ou mais cedo, a Nazaré se transforme numa praia igual às outras
Ao longo dos anos, a praia da Nazaré, destino turístico de eleição em Portugal, tem vindo a sofrer alterações. Antes da criação do tão desejado porto de abrigo, inaugurado em 1983, o areal era o local de trabalho da maioria dos nazarenos. Fazia parte da rotina amanhar, secar e vender o peixe, bem como praticar a arte xávega, na qual participavam homens, mulheres e quem se quisesse juntar para ajudar. Os barcos e as redes espalhados pelo areal, as crianças, as suas mães e avós à espera dos pescadores, bem como a agitação que era habitual descrevem um paradigma diferente daquele que encontramos hoje. “A nossa vida era e é praia. Desde criancinhas que fazemos a nossa vida aqui”, conta Francelina Quinzico, nazarena que, desde os 21 anos, amanha o peixe na marginal da praia.
Quando o porto de abrigo abriu finalmente à navegação, em 1986, a praia deixou de ser dos pescadores e passou a ser dos banhistas. As condições de segurança tornaram-se mais favoráveis à prática da pesca e agora tudo o que é do mar se passa lá.
As sete saias da Carolina
Além do peixe seco disposto no estindarte – forma nazarena de designar o estendal (rede) de secagem do pescado –, virado para sul, os turistas chegam à procura de tradições únicas. A mulher nazarena vestida com sete saias é outro popular bilhete postal. Para alguns um mito, para outros uma verdade, são várias as teorias associadas a essa particularidade. Não existe, porém, uma resposta unânime ou correta, nem mesmo por parte de quem sempre habitou a Nazaré.
As explicações para o significado do traje variam entre as mais pragmáticas e as mais simbólicas. Nos anos 1940, o habitual era vestir uma combinação de saias que acompanhava toda a perna. Nesses tempos, a mulher sentava-se na praia, à espera da chegada dos barcos carregados de peixe, que ajudava a descarregar. Quem ainda guarda memórias desses dias diz que as várias camadas de tecido serviam de proteção face ao frio da areia molhada e a primeira saia era virada do avesso para cima para cobrir a zona do tronco.
José Trindade, antropólogo social, natural da Nazaré, apresenta outra justificação para o fenómeno. Devido ao avultado investimento, a compra de cada peça da indumentária nazarena reflete, muitas das vezes, um determinado estatuto social: “Quanto maior o número de saias, mais alta a posição na hierarquia social”.
Carolina veste sete saias há, pelo menos, 50 anos, mas, como é próprio das senhoras, prefere não revelar a idade. Para a encontrar, basta visitar o Sítio, onde nasceu, cresceu e se casou. É mulher das sete saias. Quase uma relíquia viva que inspira os souvenirs que os turistas podem comprar nas visitas à Nazaré. Nunca foi mulher do mar. Nunca se dedicou à seca do peixe. O ganha-pão de hoje e de sempre é a venda de frutos secos. “Eu sou cá de cima, sempre vendi aqui. Quem é lá de baixo é lá de baixo, quem é cá de cima é cá de cima”, afirma com convicção.
As saias de Carolina e das conterrâneas são o que resta da imagem das mulheres do mar. Ela sabe o peso e o significado que essa peça de roupa possui. Conta que fazem alusão a quatro elementos: o seu número corresponde aos sete dias da semana; as cores dos bordados representam as sete cores do arco-íris; o aumento sucessivo do seu tamanho equivale às sete ondas do mar (que aumentam também progressivamente); e, por fim, o número sete retrata as sete maravilhas do mundo.
Por entre as ruas estreitas, ainda se encontram as mulheres a falar de uma janela para a outra, a roupa estendida no mesmo cordão do tempo das avós e o cheiro característico a peixe grelhado. As nazarenas que já abandonaram o ofício juntam-se à beira da estrada e passam o dia a comentar tudo o que acontece na vila. Em conversas, é habitual ouvir-se uma frase popular que Joaquim Paulo, jornalista nazareno e antigo diretor do jornal Região de Cister, subscreve: “A mulher nazarena é muito vaidosa”. De facto, a vaidade das nazarenas leva a que caprichem bastante, quer nas roupas, quer nos acessórios, que acabam por ser um acréscimo ao traje tradicional. A quantidade peculiar de saias usadas, para além de ser um claro sinal deste cunho vaidoso, permitia também o tão desejado formato de uma silhueta "redondinha”.
O traje nazareno está mergulhado em tradição. Ainda assim, há quem afirme, com toda a certeza, que as sete saias estão a acabar. A verdade é que é pouco ou nada habitual ver os jovens a usar esta indumentária, ainda que todas o tenham guardado no armário. É em festividades como o Carnaval que as ruas regressam ao passado. Por todo o lado se veem as roupas da Nazaré, em homenagem à sua história. “Dos pequeninos aos grandes, todos as vestem. Isso é que se vai manter sempre, tenho a certeza”, assegura Carolina.
De Nazaré a Fátima
Os mais curiosos não se ficam apenas pela indumentária. Passeiam em busca dos vestígios que as lendas deixaram para trás. Circula de boca em boca a história de D. Fuas Roupinho, o alcaide-mor que quase foi vítima da sua persistência na caça. Não faleceu por obra da Nossa Senhora da Nazaré. Conta a lenda que, numa rocha, estava há muito escondida uma estátua esculpida pelo próprio São José. Na iminência de cair ao mar, Dom Fuas não hesitou em invocar a santa. O cavalo cravou uma das patas traseiras e, impedindo a queda da falésia, deu-se o milagre. Agora, os olhos dos turistas focam-se durante uma série de minutos na saliência do penedo rochoso, à procura da famosa marca da pata do cavalo.
Muito antes de Fátima se tornar a capital da religião, era à Nossa Senhora da Nazaré que os crentes recorriam. Fazia parte do roteiro religioso visitar a Ermida da Memória e o Santuário da Nossa Senhora da Nazaré, ambos localizados no Sítio. Os peregrinos caminham agora noutra direção. Em tempos, a religião foi um dos maiores focos atrativos e, apesar de hoje em dia a passagem pela Nazaré continuar a ser frequente, é na cidade de Fátima que se concentra o maior número de fiéis.
“Fátima foi o diabo que apareceu à Nazaré porque lhe tirou a clientela”, expressa Alexandra, com um sorriso. Nascida na vila à qual ainda hoje chama “casa” com orgulho, Alexandra Vicente, 57 anos, trabalha com o marido, também ele nazareno. Numa loja perfumada pela maresia, dedicam-se à venda de recordações para quem não quer esquecer a visita à terra das ondas.
Onda turística
Ilustre pela tradicionalidade, a Nazaré também se distingue pelas ondas na Praia do Norte, homenageadas pela escultora Adália Alberto, autora da estátua da imagem híbrida de um animal e de um homem a segurar uma prancha de surf.
Nos últimos tempos, essas gigantescas massas de água, formadas no canhão da Nazaré ao largo da costa, atraem surfistas de todas as nacionalidades. O objetivo é claro: ultrapassar o feito de Garrett McNamara. Por muitos considerado um lobo do mar, o surfista norte-americano aventurou-se na mediática onda que quase chegou aos 30 metros. Este fenómeno gerou uma vasta onda turística. Quem não vai para a surfar, vai para a ver a formar-se atrás do farol, no sítio habitual.
Francelina não esteve sempre com os olhos postos no mar, mas garante que “a onda sempre lá esteve”. Como ela, a maior parte dos nazarenos tem a certeza de que a onda não é de agora. A vila, que até pela rainha D. Isabel II já foi visitada, em 1957, recebe centenas de turistas por mês. Joaquim Paulo garante que “mesmo antes do surf, o turismo já era a atividade que sustentava a população”.
Antigamente, a atividade turística era sazonal. Quem viajava para a Nazaré fazia-o no verão e vinha com a expectativa de aproveitar um bom dia de sol e de se banhar nas águas frias e salgadas. Se ainda houvesse tempo, subir de ascensor até ao Sítio completava o plano perfeito. Hoje, pode-se fazer tudo isto e ainda visitar o museu vivo que é o mar nazareno. Francelina recorda como era a paisagem humana na sua juventude: "A praia ficava repleta de turistas em biquíni ou de minissaia, que até cigarros nos chegavam a oferecer", um conjunto de hábitos invulgares no seio nazareno.
Noutros tempos, a Nazaré pertencia aos turistas na época balnear e aos nazarenos no inverno. No meio de tantas caras desconhecidas, nem os próprios nazarenos se viam uns aos outros. Era preciso chegar o inverno para os rostos familiares voltarem a aparecer a cada esquina.
Nos tempos que correm, o turismo passou de sazonal a constante, tendo a vila alcançado, em 2019, a quarta posição na tabela nacional de turismo do Portugal City Brand Ranking. “A onda veio compensar as fases em que havia menos gente na Nazaré, a chamada época baixa”, garante José Trindade. Todos querem ver quem se arrisca a entrar no mar. O tamanho da onda assusta agora, mas não menos do que antes. Aquilo que hoje acontece em nome do prestígio, era antes conseguido em nome da sobrevivência. O verdadeiro lobo do mar era aquele que enfrentava as águas frias, mesmo que sujeito à morte, para conseguir alimentar a família.
Tal como o turismo, a vila mudou. A Nazaré de hoje está diferente. No lugar do atual banco Millennium, estavam pequenas casas onde as mulheres arranjavam o peixe. Atrás do novo bloco de apartamentos, localizava-se um armazém onde os pescadores guardavam o peixe. A areia que dá hoje lugar a toalhas de praia era antes coberta pelos barcos e todo o equipamento de pesca.
A Nazaré de ontem não é a mesma de hoje: “Foi alvo de um grande incremento em termos de desenvolvimento das pescas, do turismo religioso e balnear”, confirma o antropólogo social. Mesmo com a presença das sete saias ou da seca do peixe, há cenários e situações que nunca mais voltarão ao que eram. A memória coletiva nazarena tenta acompanhar a evolução, ainda assim, há quem lamente e receie o muito que ainda se pode perder: “Eu que sou da Nazaré, sou uma saudosista”, confessa Francelina, com pesar.
Marta Pinto
Marta Pinto frequenta o 3º ano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS). Sem quaisquer precedentes das pessoas que a rodeavam na área da comunicação, lançou-se de cabeça aos tubarões do jornalismo. Mesmo com uma licenciatura quase terminada, Marta revisita muitas vezes um dos primeiros pensamentos que teve quando ingressou no curso: sem jornalismo não conheceríamos as vidas que conhecemos hoje, porque (quase) tudo é jornalismo.
Rita Sousa
Rita Sousa é aluna do 3º ano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS). Aos 18 anos, deixou Leiria e rumou a Lisboa expectante de como iriam ser os supostos ‘melhores anos da sua vida’. Ainda que não afirme que foram ‘os melhores’, diz com toda a certeza que têm sido anos muito bons e importantes, sobretudo porque o jornalismo ganhou um lugar muito especial na sua vida.