Negócios da Diocese do Porto: "Deitaram paredes abaixo com a minha mãe aqui a morar"
Inquilina de 82 anos do prédio da Boavista envolvido nas permutas da Diocese do Porto foi forçada a sair da casa.
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Realojada em ilha
Primeiro, foi o susto, "a meio de agosto e sem aviso", ao ver desconhecidos entrar no prédio e "descarregar material de construção", quando o negócio de permuta só seria efetuado no dia 19 desse mês e comunicado à inquilina, pela diocese, em carta datada do dia 21. Contactado pelos filhos da idosa, o novo senhorio - a empresa de construção José Salgado & Mário Moreira, com a qual a Diocese do Porto tem feito negócios imobiliários e que, de novo, recusou responder às questões do JN, tal como a Igreja - informou verbalmente que pretendia fazer "obras de demolição" e realojar a moradora durante a intervenção, como decorre da lei.
Mas Lucinda Mota teria de ir para "uma ilha no Bonfim" e instalar-se numa casa de menores dimensões, o que inviabilizava a permanência dos familiares que a acompanham.
A família recusou a solução, que implicaria deslocar a octogenária do local onde "tem uma rede de apoio" junto dos vizinhos para a zona das Eirinhas, nas imediações do antigo Hospital Joaquim Urbano, que não conhece. "A resposta que o senhor Mário Moreira nos deu foi: "Isso não me impede de começar as obras quando eu quiser"", recordam os filhos da moradora, que consideram que a mãe está a ser "vítima de pressão psicológica".
Casa ficou aberta
Apesar da oposição da moradora à proposta "sem alternativa" feita pelo novo proprietário do edifício, em "meados de setembro" a habitação começou a estremecer de alto a baixo, com máquinas a esventrar o rés do chão sob os pés de Lucinda, única inquilina de uma antiga casa burguesa de dois pisos, em granito, perto da Praça da República, onde a família "sempre fez obras" e que será destruída para dar lugar a cinco andares de apartamentos.
A "suspensão do contrato de arrendamento para realização de obras de remodelação ou restauro profundos", prevista na lei, só seria, contudo, comunicada por carta registada datada de 28 de novembro. Ou seja, já com os trabalhos em curso e depois de a octogenária ter passado a viver sem a parede do arrumo - demolida em "meados de outubro", deixando a casa acessível a partir do piso inferior -, debaixo do pó da obra e com outras áreas da casa danificadas. "Em outubro e novembro esburacaram tudo e puseram andaimes nas traseiras, a tapar o acesso ao logradouro, e já com tudo esventrado é que é feita a comunicação da suspensão do contrato", descreve o filho da inquilina, João Mota, enquanto percorre o corredor de entrada do prédio, deixado em osso e pejado de blocos de pedra partidos. "Deitaram paredes abaixo com a minha mãe aqui a morar", condena, apontando para o local onde existia uma parede em granito que sustentava a sala do 1.° andar. Foram feitas queixas à PSP e à câmara, mas as obras continuaram.
"Processo de bullying"
"Esta demolição foi feita com o objetivo de tirar a minha mãe daqui. É um processo de bullying. A minha mãe tem a casa aberta [na zona do arrumo], e a partir do momento em que abrem um buraco na casa colocam em causa a segurança dela", vinca a filha, Susana Mota.
Ao receber, no final do ano, a comunicação da suspensão do contrato, Lucinda Mota questionou, por carta, as condições do realojamento, sem obter resposta. Em março, a empresa de construção dá-lhe "um prazo de cinco dias para que seja restituído provisoriamente o imóvel", tendo avançado, em abril, com uma providência cautelar para que a habitação seja desocupada.
O certo é que, quando as obras terminarem, Lucinda não voltará para a casa que arrendou nem para idêntica, mesmo que seja realojada no prédio de onde está a ser corrida, como também prevê o regime jurídico das obras em prédios arrendados (decreto-lei 157/2006), que, apesar de defender "a recuperação dos centros históricos, reabilitando em lugar de construir de novo", abre a porta à realização indiscriminada de demolições e remodelações de imóveis.
Quem faz estes negócios "acha que está a lidar com coisas, e não com pessoas. Para eles, é só mais uma parede que vai abaixo e alguém que sai de casa", lamenta João Mota. "Mas isto não é só a minha mãe: é a minha mãe e todas as pessoas que não têm como se defender e são forçadas a sair da sua casa".
SABER MAIS
Dez apartamentos
Doada à Igreja, a casa da Rua da Boavista está no epicentro das permutas recentes feitas pela Diocese do Porto: com licença para a edificação de cinco pisos acima da cota de soleira (atualmente só tem dois), estão previstos nove apartamentos T1 e um T0, a maioria já trocados pela Salgado & Moreira por imóveis da Igreja.
Várias permutas
Duas frações T1 avaliadas em 510 mil euros foram permutadas pelo edifício da Boavista onde serão construídas. Em janeiro, a diocese trocou 15 casas nas Eirinhas por um T0 de 230 mil euros e dois prédios em Miragaia por um T1 do mesmo valor. Em setembro, a empresa dera um T1 de 200 mil euros em troca de outro edifício nessa zona.
A lei permite ao senhorio suspender o contrato e tirar inquilinos de casa para fazer obras, sem comprovar a necessidade ou urgência delas?
Antigamente, a lei só permitia obras de restauro quando o prédio precisava; agora, podem fazer-se obras de restauro ou remodelação profunda e o senhorio não tem de demonstrar que o prédio precisa. Com a iniquidade de suspender o contrato se, depois das obras, o prédio tiver condições para realojar o inquilino. Se não, pode cessar o contrato, criando alternativa para quem tenha mais de 65 anos.
Se houver alteração do imóvel, o proprietário é obrigado a realojar o inquilino numa casa idêntica à original?
Não. Em 99% dos casos não o faz, porque ele quer fazer T1 para alojamento local.
Então, o inquilino perde a casa que arrendou sem que haja rescisão do contrato. Isso não configura quebra contratual?
Configura, mas prevista na lei, que só obriga a uma correspondência com o agregado familiar do inquilino na tipologia a atribuir para o realojamento.
Como se podem defender os inquilinos?
Exigindo o realojamento em condições análogas ou equivalentes em prédios com condições de habitabilidade.
O que significa um processo destes para idosos, à luz dos casos que tem seguido?
Dou um exemplo que me chocou: num prédio em frente à Igreja do Carmo vivia um casal com oitenta e tal anos, e o proprietário pôs uma ação porque queria fazer obras e queria que eles saíssem. O senhor tinha uma enorme biblioteca e desmontaram-lhe aquilo tudo, fizeram guerrilha, punham cola na fechadura para ele não poder ir lá. Uma coisa execrável. Ao fim de três processos, conseguiu que eles saíssem para a Rua dos Caldeireiros. Mudaram em setembro, e nenhum deles chegou ao Natal: morreram.
São processos violentos...
São, até para quem os acompanha. Mas para aquelas pessoas foi de uma violência tal que nenhum deles durou três meses depois da mudança, sendo que eram pessoas saudáveis, apesar da idade.