Comerciantes de Santa Apolónia insatisfeitos por abandonarem lojas para a construção de residência universitária. Nova área de São Bento elogiada.
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Duas das principais estações ferroviárias do país estão a ganhar novas vidas. Em São Bento, o Time Out Market Porto, que junta, desde maio, uma dúzia de estabelecimentos de restauração, reúne um coro de elogios. E em Santa Apolónia, depois de um hotel de luxo, vai nascer um residência universitária, se a Câmara de Lisboa aprovar o projeto. O processo da capital, no entanto, não está a ser pacífico.
Dependente da Câmara
O rés do chão de Santa Apolónia, ocupado por várias lojas, vai servir de estaleiro de obras da futura residência universitária, que vai ter 305 camas nos pisos 1 e 2. E os comerciantes terão de sair, nos próximos meses, dos espaços onde alguns estão há décadas. Criticam a Infraestruturas de Portugal (IP) por não ter apresentado locais alternativos e por os ter avisado de uma forma "fria e desumana". O avanço da empreitada está dependente da Câmara de Lisboa, que diz que o processo de licenciamento está "em apreciação".
Quando, há quatro anos, Francisca Monteiro soube dos planos para a estação de Santa Apolónia teve um mau pressentimento. "Quando soube que o hotel vinha para aqui, em 2020, percebi logo que não ia acontecer coisa boa", desabafa a vendedora de jornais e revistas, referindo-se a um hotel de luxo inaugurado na estação ferroviária em 2022. No mesmo ano foi anunciada a residência universitária para estudantes, mas a comerciante ainda estava longe de imaginar o que implicaria a empreitada.
"À espera de um milagre"
Os lojistas foram avisados em abril, por carta registada, enviada pela IP, de que teriam de sair do sítio, onde alguns estão há décadas, sem qualquer sugestão de outro espaço. Ali há 30 anos, Francisca está inconsolável. "Fomos apanhados de surpresa. Nem espaços alternativos nos arranjaram, foi uma facada, é desumano. Os clientes que vêm aqui há anos estão danados", conta em lágrimas a poucas semanas de sair definitivamente da loja situada na estação ferroviária onde a mãe foi ardina há 70 anos.
"O prazo que me deram foi até ao final de julho, mas as obras foram adiadas e deixaram-me continuar até setembro. Penso que até ao final do ano vamos ter de sair todos. Diz-se que a subconcessionária do hotel vai fazer um espaço comercial com várias lojas, e isto vai tudo desaparecer", lamenta a comerciante, com 60 anos, que pondera agora ser motorista de TVDE.
Numa loja com menos de 10 m2, Joaquim Rebelo, ali há 20 anos, diz que também recebeu a notícia "com surpresa e desilusão". "Foi só uma carta, uma frieza total. Disseram que tínhamos de ir embora e mais nada, depois nunca falaram connosco por iniciativa deles. Estamos numa situação um bocado nublada", critica, acrescentando que esta é a sua única fonte de rendimento e que, provavelmente, ficará desempregado aos 60 anos. "Estou à espera de um milagre", suspira o comerciante que paga cerca de 1000 euros de renda e luz.
Inês Mendes, 34 anos, numa loja de aparelhos eletrónicos com quase duas décadas, lamenta "o prejuízo" do encerramento, mas lembra que "a empresa pelo menos tem mais duas lojas, em Alverca e Espinho".
Bruno Veríssimo, 31 anos, num espaço comercial que vende sobretudo lotaria, tem uma visão mais otimista. "Já viu como isto está?", diz, apontando para o teto degradado.
Comércio é necessário
"Não há ar condicionado, no verão sofremos muito com o calor. Não faz sentido nos dias de hoje uma das principais estações ferroviárias não ter wi-fi nem tomadas elétricas, precisa de obras de requalificação. Se ficar desempregado, procuro outro emprego", descomplica.
Para Susana Mendes, 52 anos, cliente deste espaço há duas décadas, esta loja "vai fazer muita falta". "Trabalho na zona e habituei-me a vir aqui diariamente. Vai ser mau fecharem tantas lojas, pois é uma estação que necessita de algum comércio. À volta não há nada, não sei onde irei comprar o que comprava aqui", lamenta.
Na estação de Santa Apolónia, nos últimos meses, já fecharam portas um restaurante indiano, uma loja de roupa e outra que vendia bolas de Berlim, sobrando agora sete espaços comerciais.
IP sem espaços alternativos para os vendedores
A Infraestruturas de Portugal diz ao JN que "o prazo estimado para as obras de adaptação da ala poente do edifício de passageiros de Santa Apolónia para residência universitária é de 14 meses, estando o seu início dependente da conclusão do respetivo processo de licenciamento junto do município", informação confirmada ao JN pela autarquia. A residência terá "305 camas, distribuídas em tipologias individuais e duplas".
A empresa explica ainda que "em resultado da instalação desta residência nos pisos superiores ao espaço ocupado pelos subconcessionários" será necessário encerrar esse mesmo espaço para "a realização das obras relativas às diversas infraestruturas do edifício da estação (água, esgotos, energia, telecomunicações), a construir no espaço, aproveitando-se para requalificar a zona de espera de passageiros e os diversos serviços ferroviários atualmente existentes". O JN questionou a IP sobre o que vai surgir no espaço das lojas, após o fim da empreitada, mas não respondeu.
Atrasar o encerramento
A IP garante ainda que os lojistas foram "antecipadamente informados das razões do encerramento do espaço e contratualmente notificados nesse sentido, tendo-lhes sido igualmente transmitido que a IP Património está a tentar encontrar soluções que permitam prorrogar o mais possível o encerramento das lojas". Acrescenta que "o edifício da estação de Santa Apolónia não comporta alternativas de espaço que lhes possam ser atribuídas".