Governo cria grupo de trabalho para estudar doenças dos ex-trabalhadores da Empresa Nacional de Urânio da Urgeiriça e seus familiares. Muitos morreram de cancro.
Corpo do artigo
Sempre que Maria Gomes vai à janela lembra-se do marido e do trabalho que lhe ceifou a vida. Já passaram dez anos, mas a dor continua bem presente. José Carlos Gomes foi serralheiro durante mais de 20 anos nas antigas minas de urânio da Urgeiriça, em Canas de Senhorim, Nelas. O complexo mineiro fica em frente à casa onde vive. O cavalete de Santa Bárbara, um dos símbolos que ficou da exploração de urânio na localidade, lembra-a sempre do mal que as minas trouxeram.
O marido de Maria Gomes foi um dos muitos funcionários da extinta Empresa Nacional de Urânio (ENU) que morreram de cancro por terem estado expostos anos a fio à radioatividade. "O meu marido morreu de cancro na língua, garganta e pulmões. A doença foi evoluindo. Foi mesmo horrível, não quero que ninguém passe por aquilo que passei", conta, emocionada. "O Estado não os protegeu. Eles não usavam máscara, tocavam no minério e trabalhavam quase sem proteção", acrescenta.
Também Maria Ester Pais continua revoltada. A indemnização que recebeu do Estado pela morte do companheiro não acalma a dor que ainda sente. Perdeu o marido, há 18 anos, com cancro no pulmão. Ele começou a trabalhar na ENU quando tinha apenas 16 anos. A viúva não esquece o sofrimento do companheiro e que este foi despedido depois de lhe ter sido detetada uma mancha negra num pulmão, nos exames regulares de saúde que eram feitos a quem trabalhava nas minas. "Ele foi despedido porque deram conta do que ele tinha, assim se houvesse algum problema eles ficavam livres de responsabilidades", afirma, convicta.
Quem trabalhou nas minas, como Carlos Alberto Pereira, garante que nunca soube do inimigo invisível que tinha nas mãos. "Nós não estávamos protegidos, tínhamos apenas uma máscara e às vezes nem a usávamos. Mas nunca nos informaram que a radioatividade era prejudicial. Agora sei porque, infelizmente, tenho vários familiares que morreram com cancro", refere.
O ex-funcionário da ENU perdeu o pai para a doença. Duas irmãs tiveram de tirar os peitos e um irmão está com cancro na próstata.
Investigação
O Governo, cumprindo uma deliberação da Assembleia da República, na última discussão do Orçamento do Estado, mandou agora criar um grupo de trabalho que ficará responsável pela realização de um estudo epidemiológico aos ex-trabalhadores das minas da Urgeiriça e aos seus familiares.
"O que se pretende é a realização de um estudo de corte histórica (retrospetivo) de mortalidade e morbilidade dos ex-trabalhadores da ENU, bem como dos seus familiares, incluindo a realização de um estudo descritivo sobre o estado de saúde atual dos ex-trabalhadores participantes no Programa de Intervenção em Saúde (PIS)", explica o Ministério da Saúde.
A equipa de trabalho, composta por elementos de vários organismos públicos ligados aos setores da saúde, ambiente e energia, tem dois anos para concluir a investigação e depois apresentar conclusões.
A família mineira da Urgeiriça aplaude a realização da pesquisa. "É importante para salvar aqueles que foram prejudicados pelas minas", sustenta o presidente da Associação dos Ex-Trabalhadores das Minas de Urânio, António Minhoto. "Pode ser uma ajuda. Já nos controlam mais se tivermos alguma coisa grave", remata Maria Gomes, salientando que por enquanto está saudável, mas é preciso ver "daqui para a frente".
AINDA HÁ 30 CASAS POR DESCONTAMINAR
Os antigos mineiros da ENU que moram em casas junto ao antigo complexo mineiro continuam a queixar-se dos atrasos na descontaminação das habitações que foram construídas com material radioativo proveniente das minas. Pedem celeridade neste processo para "viverem em paz e sossego". Carlos Alberto Pereira é um dos moradores que mais razões de queixa têm. Vive numa casa com altos níveis de radão e queixa-se de que outras com valores mais baixos já foram intervencionadas. "Claro que sinto receio, tenho um cuidado especial, durmo com a janela aberta para o ar circular", explica. António e Lurdes Gomes já viram a sua habitação descontaminada há mais de um ano, mas o logradouro continua por arranjar. "Para entrarmos em casa passamos por toda a zona contaminada. Não temos uma área que se diga que é segura", criticam. A Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM), responsável pelos trabalhos de descontaminação, garante que falta intervencionar apenas 30 das mais de 150 moradias selecionadas. Não há ainda um prazo para a conclusão dos trabalhos. Só depois de realizadas as intervenções nas casas é que a EDM promete avançar para as áreas envolventes.