Região de Aveiro vai apresentar candidatura à UNESCO, englobando as embarcações e a sua construção. Estimular jovens para aprender a arte naval é um dos objetivos.
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Símbolo de Aveiro, cidade e região, o barco moliceiro já não cumpre o seu propósito inicial de transportar moliço para adubar os terrenos agrícolas, mas continua a agitar as águas da ria, todos os dias, carregando turistas para a frente e para trás. Há 50 anos havia três mil registados, hoje são apenas 40. Por isso, para preservar a arte dessas embarcações típicas, a Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro (CIRA) quer apresentar à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no próximo ano, uma candidatura que visa classificar o moliceiro e a construção naval da ria como Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Em causa o "saber-fazer"
"A arte da carpintaria naval associada ao moliceiro encontra-se perante alguns desafios, que colocam em causa a sua continuidade. É exemplo disso o reduzido número de mestres construtores no ativo, cinco, e a sua idade avançada, pois apenas um tem menos de 60 anos", explica José Eduardo Matos, secretário executivo da CIRA. A candidatura assentou nessa realidade e tem como objetivo, por exemplo, "atrair jovens" e "dar continuidade a este saber-fazer".
Em março, foi submetida uma candidatura para inscrever o moliceiro e a sua construção no Inventário Nacional de Património Cultural Imaterial. Nos próximos meses, é esperada uma decisão. Só depois da sua aceitação é que a CIRA poderá submeter o processo da Comissão Nacional da UNESCO, para que um novo processo de apreciação e avaliação seja iniciado à escala internacional.
Registos
40 moliceiros restam na ria de Aveiro (tradicionais e no turismo), mas na década de 70 do século XX estavam registados 3000 moliceiros a operar.
Tradicionais
Atualmente, há uma dezena de moliceiros tradicionais - que navegam à vela em "ria aberta" - na região. Desses, uns são utilizados no turismo, outros para uso particular.
Turismo
Nos canais urbanos, em Aveiro, há cerca de 30 que se dedicam à atividade marítimo-turística, alguns com características construtivas diferentes das tradicionais, para facilitar a navegação e a segurança dos turistas.
"Trabalho por amor a isto, não por necessidade"
António Esteves é o construtor de moliceiros mais antigo em atividade. Já os faz há 70 anos.
A força que sente no corpo não traduz a idade que marca o Cartão de Cidadão: 80 anos. "E ainda dizem que tenho que ser operado ao coração, porque tenho um problema numa válvula. Nem pensar", afirma António Esteves, mais conhecido por "Pardaleiro". É mestre construtor de barcos moliceiros. O mais antigo em atividade na ria de Aveiro. Está, por estes dias, a terminar mais uma embarcação típica, de dezenas que lhe passaram pelas mãos, ao longo dos últimos 70 anos. Do seu estaleiro, em Pardilhó, Estarreja, o barco vai para a água, onde servirá uma empresa marítimo-turística. E o mestre Esteves já só espera pelo momento em que, ao ver o moliceiro a navegar, ouça toda a gente a dizer: "Olha que lindo!".
"Trabalho por amor a isto, não por necessidade. E sinto um prazer por, depois, as pessoas verem esta coisa linda", conta António Esteves, que começou a trabalhar na construção daquelas embarcações típicas aos 10 anos. Ali mesmo, em Pardilhó, onde havia "sete ou oito estaleiros". Depois, emigrou para os Estados Unidos da América, onde trabalhou na construção de iates, mas a paixão pelos moliceiros não esmoreceu. Vinte anos depois, quando voltou, continuou a construí-los.
Custa 20 mil euros
O "Viva a Ria" chegou às mãos do mestre Esteves "já todo podre". Só lhe conseguiu aproveitar as "cavernas" (parte interna da embarcação). A mestria das suas mãos experientes tratou do resto. E o "pau de pontos" - uma ripa comprida de madeira que funciona como escala, onde estão apontadas, à mão, todas as dimensões e características da embarcação - deu a preciosa ajuda de sempre. "Sem o pau de pontos, não há barco", garante António Esteves.
Madeira de pinheiro bravo - escolhido a dedo pelo mestre, antes de ser cortado -, para as tábuas ao comprido, e de pinheiro manso, para as "cavernas". E pregos. É disso que é feito um barco moliceiro, cujo preço ronda os 20 mil euros. E os imponentes 15 metros de comprimento daquelas embarcações não impedem António Esteves de as construir sozinho. Aliás, não tem outro remédio, porque "não há quem queira aprender". "Só vem cá uma pessoa ajudar-me a meter as peças grandes. E, no fim, o eletricista fazer a instalação elétrica e o grande pintor José Oliveira pintar os painéis", revela o mestre, há dois meses a recuperar o "Viva a Ria".
Daqui a alguns dias, deverá acontecer o "bota-abaixo", momento em que o barco é metido à água. António Esteves vai levá-lo até ao destino, com a certeza que navegará, sem problemas. Nada teme. Só espera mesmo ouvir toda a gente dizer: "Olha que lindo!".