Chegar até aos moinhos de Jancido, na Foz do Sousa (Gondomar), é fácil e até bastante prazeroso. Pelo caminho limpo e sem obstáculos, tem-se o rio Sousa à vista e pode-se seguir nesse trilho ou pela borda da água. A margem e a encosta rochosa têm a vegetação aparada, há passadiços e etiquetas nas árvores a indicar a que espécie pertencem.
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Entre loureiros, carvalhos e pilriteiros, cantigas de passarinhos e as curvas do rio, chega-se aos primeiros moinhos. É um postal de viçoso verde onde se destaca um moinho redondo em xisto e telha de lousa, com uma cascata a jorrar ao lado. Há uma zona de merendas e ainda um conjunto de placas em madeira indicando direções e distâncias dos lugares vizinhos como Gens, Juncal e Cerquido... e ainda Roma, Nova Iorque e Sydney.
Os autores do apontamento de humor são os mesmos que tornaram este lugar aquilo que é agora - e que não era há dois anos e meio. Foi nessa altura, no final de 2017, que um grupo de amigos, de laços criados graças a uma comissão de festas, se apercebeu do sonho comum. Nascidos e criados em Jancido, queriam recuperar os moinhos de água (alguns com 200 anos) que os mais velhos deles ainda viram laborar. Os rodízios foram deixando de trabalhar durante a década de 1970, o último deixou de funcionar em 1979.
Foram tomados pela erosão e pelo mato, de tal forma que, quando os amigos os procuraram, não os conseguiam ver naquela encosta do rio Sousa, junto à antiga linha de Midões (ver caixa). No grupo, estava António Gonçalves, os irmãos Manuel e Fernando Sousa, e Paulo Campos. Outros deixaram de ser tão assíduos, por razões profissionais. E outros ainda, como André, são ajudantes fiéis.
"Pensamos que, se os nossos pais e os nossos avós tinham aqui estado, tinha chegado a nossa vez", resume António que mantém registos.´É por isso que se sabe que, desde novembro de 2017, foram ali empregues 2150 horas de trabalho, todos os sábados à tarde, sem nunca falhar um.
Nesse tempo, fizeram uma obra gigante. Dedicaram-se à limpeza de mato de encostas e à desobstrução de centenas de metros de caminhos, à mão. Estão a fazer eliminação gradual de infestantes por métodos naturais e já plantaram mais de 400 árvores de espécies autóctones. Construíram uma fonte, passadiços, bancos, miradouros e parques de merendas, limparam margens do rio Sousa e do ribeiro de Cai Águas.
Também construíram muros e escadas, usando a pedra local, que lascaram "à moda antiga". Reconstruíram sete dos oito moinhos e vão dedicar-se ao oitavo na primavera. Ao grupo base, juntam-se a cada passo amigos para ajudar - ou porque têm tratores, ferramentas ou competências específicas, somo saber soldar. Os materiais usados - das telhas à lousa e a diversas peças de metal - foram todos cedidos.
"Nunca fizemos uma associação, nunca mexemos em dinheiro. Recorremos às nossas amizades", conta António. Com essa ajuda, superaram um desafio hercúleo: construir uma ponte de metal e piso de espesso contraplacado sobre o rio Sousa, substituindo a antiga ponte da linha de Midões, que ruíra. A ponte, robusta, permitiu ligar Jancido a Gens, criando mais três quilómetros de trilho. Hoje, há quem corra, caminhe e ande de bicicleta por ali.
Esse é o resultado que mais toca aos homens de Jancido. Os mais velhos, na casa dos 50 anos, ainda têm memória de levar milho para moer naqueles moinhos, como Manuel Sousa. Filho de lavradores, foi com os pais trabalhar ali muitas vezes, com os moinhos à vista. "Todos os fins de semana, vemos pessoas a passear por aqui, famílias inteiras. Dantes, isso não era possível, não se passava sequer para aqui", explica António.
Foi uma devoção paciente, que consistiu em procurar, um por um, todos os oito moinhos, nos quais trabalharam com a autorização dos proprietários - e o seu incentivo - uma vez que os terrenos são privados. No fim de semana passado, o grupo trabalhava num novo passadiço na margem do rio. Nenhum deles é engenheiro ou pedreiro. Dois são vendedores, outro eletromecânico e um técnico de obra.
Paulo Campos é motorista e apressa-se a revelar outro feito: graças à intervenção dos voluntários, a Federação Portuguesa de Montanhismo acaba de certificar o trilho dos Moinhos de Jancido, com 6 quilómetros de extensão. Um trilho feito com as mãos e a alegria destes amigos.
Moinhos e a ponte são memórias da Foz do Sousa
A freguesia de Foz do Sousa, à qual pertence Jancido, é um território de importantes memórias - e os vestígios desse passado surgem a cada passo. No caminho para Jancido, por exemplo, avista-se o imponente edifício da Antiga Central de Captação de Águas, que abastecia o Porto. O trilho dos Moinhos de Jancido coincide com o traçado da antiga linha férrea por onde era transportado o carvão extraído das minas de Midões. A antiga ponte sobre o rio Sousa que servia essa linha ruiu, deixando de ser possível passar de uma margem à outra. A travessia foi reposta pelo grupo de voluntários dos moinhos de Jancido, que construíram uma nova estrutura que já serve a população. Os moinhos também laboraram até 1979, com a água a ser partilhada entre consortes da aldeia.
Pormenores
430 árvores e arbustos nativos foram plantados pelos voluntários de Jancido, com o apoio do Futuro - Projeto das 100 mil árvores da AM do Porto.
2150 horas de trabalho dedicadas aos moinhos, ao trilho e à floresta de Jancido por um total de 40 voluntários, desde novembro de 2017.
33 espécies de aves avistadas no local (e registadas no site ebird.org), num total de 55 espécies animais, incluindo mamíferos, répteis e anfíbios.
6 quilómetros de percurso melhorados, abertos e criados pelo grupo, permitindo a certificação (recente) do Trilho dos Moinhos de Jancido.