O sr. Lemos faz balões à mão há 70 anos: "O vírus entrou-me no sangue, nunca mais saiu"
De seda às cores, papel de jornal, gigantes de 12 metros ou com bateladas de fogo de artifício, os balões de Florentino Lemos ficaram famosos no Grande Porto. Trinta anos depois e com técnica aprimorada, o gaiense continua a fazê-los com mestria. A culpa é da alegria.
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Florentino Lemos (só Lemos para os amigos) apresenta-se como “um jovem de 86 anos”. Vai treinando essa jovialidade a partir do anexo que tem dentro do quarto, na casa onde vive há várias décadas, na União das freguesias de Pedroso e Seixezelo, Vila Nova de Gaia. As bancadas que em tempos mandou fazer a um senhor dos Carvalhos continuam a servir para criar balões de ar quente para os santos populares. Fez o primeiro há mais de 70 anos, era uma criança da quarta classe de uma escola em Sandim, a aprender a arte de fazer estrelas, papagaios e balões de papel que o professor ensinava aos sábados a partir de maio. Certa vez lançaram uma pomba de 50 metros de comprimento e 25 de largura e era “tanta gente, tanta gente” a assistir que “foi um sonho, foi formidável”. “Começou por aí. O vírus entrou-me no sangue, nunca mais saiu. Enfeitiçou-me. Isto é uma paixão”, conta com um entusiasmo que vai crescendo, enquanto mostra as resmas de papel de seda às cores que lhe sobram na bancada onde já fez dezenas de milhares de balões - ora gigantes, ora com paraquedas, ora com espetacular fogo de artifício - e onde continua a fazê-los, embora mais modestos (este ano foram 700).
Quando saiu da escola e foi trabalhar como mecânico de máquinas, os colegas pediam-lhe para fazer balões – três tostões cada folha, lembra-se bem. “Ainda era puto”, fazia-os com petróleo. “Era um perigo, mas naquele tempo era aquilo. Se caísse uma pinguinha no papel, o balão a dada altura ardia. Bastava aquecer e ardia logo”. Não podia ser. Mais tarde experimentou com parafina e desenvolveu uma técnica para evitar balões tomados pelas chamas: aplicar chapinhas de alumínio laminado perto da mecha, na boca do balão, para impedir que faúlhas em queda chegassem ao papel. Isso e os furinhos que todos os seus balões têm – que “fazem a respiração”, libertando “gases sujos” e facilitando a entrada de “oxigénio puro” – tornam-nos mais resistentes. “Os meus balões não ardem. São rápidos e não ardem”, garante, sem dúvidas. Uma vez, há 30 e tal anos, houve um que chegou ao Marco de Canaveses (ou Paredes, já não se recorda bem, a memória nem sempre acompanha a destreza das mãos).
Balão de 12 metros "parecia um foguetão"
Nos tempos dourados, o sr. Lemos fazia à volta de 1600 balões por ano: “Tinha muitas festas e cada festa lançava 10/12. Era o São João do Porto, as Rusgas do Porto, o São João de Espinho, as festas de Sanguedo, Canelas, Lourosa, o São Pedro da Afurada…” Durante cinco anos, fez uma largada de 14/15 balões de seis metros com “uma variedade de fogos”, para uma festa que juntava as freguesias do rio Douro, da Afurada até Lever - custava 500 contos (2500 euros). “Eu tinha balões que lançavam bazucas para todo o lado. A 100 metros para cada lado. Tim, tim, tim!!! Era um espetáculo de variedades. Ia mais gente por causa dos balões do que pelo fogo de artifício.”
O maior balão que fez, ainda sem grande espetacularidade na pirotecnia, tinha 12 metros. Foi para o São João de Tabosa, em Pedroso, nos anos 90. Pediram-lhe um com dez metros, mas Florentino sabia que havia um desse tamanho no Brasil, “o maior do mundo”, então quis superar. “Parecia um foguetão!”, recorda. Tinha três homens em baixo e uma grua em cima, para ajudar a pô-lo ao alto. “O meu medo era ele encolher quando abrisse. Tinha de ser perfeito, esticado como a minha pele. Começou a abrir, a abrir, a abrir. Parecia uma estrela, até as cores brilhavam. A perfeição daquele balão... Perfeito, pá! O vermelho alaranjado, o azul... Coisa linda”. Não entrou para o Guinness como na altura lhe diziam, mas arrastou centenas de pessoas para verem o balão subir. Pagaram-lhe 50 contos [250 euros] por uma largada de 12 (esse gigante e outros mais pequenos). “Nem 200 contos [mil euros] pagavam aquilo”, atira.
Fazer o balão gigante demorou-lhe quase um mês. “Foi uma dor de cabeça. Andei para aí três semanas a fazer contas”, confessa, sublinhando a importância da matemática nesta ciência de fazer balões. “Um balão de metro e meio tem seis gomos, um de seis metros tem 13, um de 12 metros tem 57. Cada balão tem contas a fazer. Se não fizermos as contas certas, pode ir engelhado, de lado… Se a geometria não está certa, não dá para ele ficar esticadinho. Se for a menos, fica como um pepino e arde.”
Quando Florentino Lemos se cansou de fazer contas e começou a usar moldes, passou a fazer 10 ou 15 balões de uma só vez. "Cada balão tem seis gomos, cada gomo leva duas folhas. Faço as contas, ponho as folhas na bancada, faço a cauda. Cor sim, cor não, para quando for ao ar se ver uma cor de um gomo, mais outra. Agarro em 50 folhas, ponho o molde, risco e prendo com molas e corto tudo certinho. Depois meto cola, abro os seis gomos e fica o balão aberto", explica, gabando-se das cores embutidas que usa para fazer a base dos balões. "É uma inovação que não se vê nos outros. Eu bato recordes com isto. Não posso ver esses balões que andam aí no ar, parecem sacos de cimento. Se fosse eu que mandasse, proibia esses balões. Aquilo é algum balão de São João? Um saco de cimento no ar? Nem geometria tem, nem corte tem. Pelo amor de Deus. Um balão de São João tem de ter a geometria de balão. Os meus, pequeninos ou grandes, têm corte de balão. É bonito, vê-se no ar.”
"A alegria daquela gente toda a pegar-me, a beijar-me, a abraçar-me"
Na passada noite de São João, foi a Coimbrões lançar um balão de cinco metros, azul e branco. “Grande parte das pessoas foi pela curiosidade de ver o balão. Toda a gente falava do balão à Porto”, diz sem falsas modéstias. "Pô-lo no ar também é um espetáculo. Como eu deito ninguém deita. Estendemos o balão em comprimento, abrimos a boca, abrimos o gás e com 15% de calor fica logo acima de nós direitinho”, explica. Depois é largar e aplaudir o espetáculo de luz e bateria no céu. “Foi um sucesso. A alegria daquela gente toda a pegar-me, a beijar-me, a abraçar-me. Sei lá quem eram. Eram velhos, novos, tudo.” O preço de um balão como aquele seria de 400 euros, mas não cobrou nada: o pagamento é a felicidade partilhada. “Eu vim cá para ver a alegria de vós todos. E a vossa alegria contagia-me em dobro", respondeu-lhes. “O senhor Lemos deve ser muito conhecido aqui na zona”, atiramos. “Mais que o tremoço”, responde sem medo.