A rua mais comercial do Porto, que costuma fervilhar com milhares de pessoas, parece adormecida. Mas a pandemia não parou as obras.
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Com muitas pessoas ainda em teletrabalho e grande parte das lojas fechadas, a Rua de Santa Catarina, coração comercial do Porto, e que em dias normais fervilha com milhares de pessoas, está agora ocupada essencialmente por operários das obras de reabilitação urbana e por alguns cantores que insistem em animar a cidade, apesar do medo da Polícia e da covid.
Gudas entoa uma canção de Caetano Veloso, enquanto na soleira da entrada de uma loja de pronto a vestir, ainda fechada devido ao confinamento, um grupo de quatro operários da construção civil almoçam. Trazem de casa a marmita e comem no chão. Oriundos da região do Vale do Sousa, e apesar das viagens diárias até casa, afirmam que passam mais horas no Porto do que nas cidades de origem. "A nossa área foi das poucas que não pararam com a pandemia", afirma um deles.
Albano Ribeiro, presidente do Sindicato da Construção de Portugal, confirma. "Há dez mil operários do setor a trabalhar no Porto". Às obras particulares, necessariamente mais pequenas, juntam-se as grandes intervenções públicas, como o Terminal Intermodal de Campanhã ou a requalificação do Mercado do Bolhão. E outras estão agora a arrancar, como a expansão do metro, no Porto e em Gaia.
"O problema destas pequenas obras na Baixa é o facto de 80% dos trabalhadores serem ilegais e sem formação. Imigrantes provenientes do Brasil e da Índia que nunca trabalharam na construção civil e que estão ilegais e sem direitos laborais", esclarece Albano Ribeiro, que por diversas vezes já alertou as autoridades para a necessidade de mais inspeções. Esses trabalhadores raramente saem dos estaleiros para não serem vistos, mas os portugueses convivem em pleno espaço público. Montam mesas para as refeições com tábuas sobre tijolos.
"O pior é que, apesar de já termos pedido a testagem em massa, estes homens são transportados em carrinhas e trabalham sem máscara, sem gel e sem manter o distanciamento aconselhado pelas autoridades de saúde", acrescenta Albano.
"Há ainda pouca gente a circular na rua e se não fossem estes trabalhadores das obras o cenário era ainda mais triste", conta Amélia Lima, gerente de uma ótica com o nome da família localizada na Rua de Santa Catarina há 58 anos. "Vamos ver se isto começa a animar a partir do dia 5 de abril quando houver menos restrições e esperemos que a situação não volte a piorar porque a grande maioria do comércio não aguenta um terceiro confinamento", diz.
Muitas não reabrem
Joaquim Santos, funcionário da livraria Leya Latina, é da mesma opinião e fala nas centenas de despedimentos realizados em estabelecimentos vizinhos. "Muitas lojas estão em obras porque já não voltarão a abrir tão cedo", afirma.
Ao longo da rua são visíveis os taipais e as gruas. Ouve-se o barulho das máquinas e veem-se as carrinhas das obras estacionadas. "Muitas casas têm também os funcionários em lay-off", salienta Teresa Costa, funcionária de uma loja de pronto a vestir para criança. Todos têm a mesma opinião: há menos pessoas nas ruas porque estão com medo: "Desta vez, morreu muita gente!".
Resistem, apesar do medo do vírus e da Polícia
Oriundos de vários países, interpretam os mais diversos estilos musicais. Do tango ao fado, da música popular brasileira à ópera. A Baixa portuense há muito se habituou à presença dos artistas de rua, setor muito afetado pela pandemia. Alguns já chegaram a concursos de talentos da televisão. Quem resistiu e ficou fá-lo com medo da Polícia e do possível contágio do novo coronavírus.
Quando surgiu a pandemia, há pouco mais de um ano, estes animadores do espaço público preparavam-se para se unir em associação. A covid-19 afastou grande parte destes artistas do palco que sempre gostaram. "Cheguei a Portugal em novembro de 2019 numa altura em que as ruas fervilhavam de gente. O Natal estava aí e o pessoal já andava nas lojas", conta Gudas, artista brasileiro e um dos poucos resistentes e que continuam a alegrar a Rua de Santa Catarina, no Porto.
Dos cerca de 20 cantores, bailarinos e músicos que atuavam na cidade, "restam uns três ou quatro". Durante o primeiro confinamento geral, Gudas esteve ausente da rua para regressar no verão. "Correu bem. Durante esses dois a três meses, foi bom ver de novo gente e compensou", refere, enquanto olha para o chão, para o estojo aberto da viola e onde repousam meia dúzia de moedas.
Para alegrar o dia
Nos "dias dourados" as atuações compensavam. "Ganhava-se algum dinheiro", confessa Gudas. Do outro lado da rua, Galdino abana a cabeça, confirmando a resposta. "Continuamos aqui, não pelo dinheiro, mas para mostrar que não podemos desistir. As pessoas andam deprimidas e nós temos de ajudar. De alegrar o dia delas", explica.
Galdino também é brasileiro, mas está em Portugal há 20 anos e recorda os dias em que os turistas enchiam a cidade. Reside em Braga e tanto atua na capital minhota como no Porto. "O problema é que a gente está morrendo de medo. Da atuação da Polícia, das queixas dos moradores pelo barulho, e do vírus, por estarmos assim tão expostos", diz Galdino.