Uma petição pública assinada por mais de três mil pessoas em três semanas exige a suspensão imediata da construção um restaurante com estacionamento na Reserva Natural do Almargem e Trafal, no Algarve. Está ainda previsto para o local um hotel, com alvará emitido em 1971.
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A Reserva Natural Local da Foz do Almargem e do Trafal, em Quarteira, Loulé, foi classificada como área protegida em 14 de agosto de 2024. “Inclui ecossistemas sensíveis, habitats de várias espécies protegidas e desempenha um papel fundamental na regulação hídrica e conservação da biodiversidade”, lê-se no manifesto da petição. Criada a 27 de março e assinada por mais de 3200 pessoas, é dirigida, entre outros, ao presidente da República, ao primeiro-ministro e entidades locais e nacionais com responsabilidades no ambiente e ordenamento do território.
Menos de um ano após a classificação, há duas intervenções previstas para a reserva: um restaurante, já em construção, com um parque de estacionamento para 300 carros dentro do pinhal; e um hotel num lote separado, resultado do alvará n.º 5, de 1971, “cujo direito de construção nunca foi reavaliado à luz da nova classificação da reserva”, dizem os autores da "petição para a suspensão imediata das obras da reserva natural local da foz do Almargem e Trafal", em Loulé, no Algarve.
A petição pretende “a suspensão imediata das obras do restaurante e do estacionamento” e uma “revisão urgente do licenciamento”, tendo em conta a nova classificação da reserva. “A realização de um Estudo de Impacto Ambiental atualizado, que avalie os danos causados e os riscos futuros” é outra das exigências, lembrando que o alvará de construção foi emitido em outubro de 2023, antes da reserva ser oficializada, mas que a licença só foi tornada pública em 10/12/2024, quatro meses depois da área já estar protegida. O manifesto exige ainda “a responsabilização dos órgãos envolvidos, incluindo a Câmara Municipal de Loulé e as entidades que permitiram o avanço das obras sem revisão adequada.”
Câmara diz que Regulamento da reserva não tem valor legislativo
Contactada pelo “Jornal de Notícias”, a Câmara Municipal de Loulé (CML) diz que o procedimento de licenciamento “obedece a várias fases até chegar ao início dos trabalhos” e esclarece que o projeto de arquitetura foi aprovado por despacho do presidente a 4 de outubro de 2023 e que a licença de construção 398/2024 foi emitida a 10 de dezembro de 2024. Questionada sobre a emissão de um alvará de construção para uma zona em que estava em processo de classificação ambiental, a autarquia diz que “o Regulamento da Reserva Natural não possui qualquer incidência territorial urbanística”, citando o disposto do n.º 9 do artigo 15.º do Regime Jurídico da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (RJCNB), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de julho e alterado pelo Decreto-Lei n.º 242/2015, de 15 de outubro. “Não apresentando assim valor legislativo capaz de se sobrepor ao permitido pelos planos em vigor para a área em causa, nomeadamente no que diz respeito ao Plano Diretor Municipal de Loulé”, argumenta.
A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR-A) diz que, consultada a base de dados "foi estabelecida relação processual com o pedido de parecer", solicitado pela Câmara Municipal de Loulé em fevereiro de 2025, através do Sistema Informático do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (SIRJUE). “No requerimento apresentado em 2025 foi proposto o recuo da estrutura que tinha sido aprovada em 2023, bem como alteração da solução construtiva”, informa.
Segundo a CML, “o pedido em causa consiste em alterações ao projeto de arquitetura para uma versão esteticamente mais atrativa, funcionalmente mais eficaz e com uma integração no território menos intrusiva”, na sequência da mudança de promotor e de arquiteto da obra. “Tendo sido alertado que teriam de ser respeitadas integralmente todas as condições definidas para a execução da obra e que deveriam obter novamente a concordância de todas as entidades internas e externas envolvidas”, acrescentou a autarquia.
Construção enquadrada no plano de ordenamento
A CML enquadra a construção do restaurante na Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2016 que aprova a alteração do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Vilamoura - Vila Real de Santo António, que define aquela obra como Apoio de Praia Simples (APS) com Equipamento Associado. Segundo o POOC, o APS pode "complementarmente assegurar outras funções e serviços, nomeadamente comerciais", onde se encaixa a construção do restaurante, considerado como um equipamento, que o mesmo regulamento admite como podendo ser "estabelecimentos de restauração ou de bebidas."
Para a CCDR, "a existência de um equipamento de praia na respetiva frente costeira tem localização indicativa na unidade balnear UB2 do Plano de Praia - P4Almargem, do mencionado POOC, em vigor." Segundo a CML, o projeto está dentro da área máxima de construção, de 400 m2 e "o estacionamento em espaços aplanados de clareira está de acordo com a proposta do requerente para a área cumprindo os valores de dimensionamento previstos no POOC para o apoio de praia em questão (entre 283 a 377 lugares)." A autarquia refere ainda que "as características dos apoios de praia previstos são aferidas pela Agência Portuguesa do Ambiente – APA, entidade com competência sobre esta matéria."
Em resposta ao JN, a APA considera que "o projeto do apoio de praia com equipamento associado cumpre as áreas e funções definidas no POOC." Argumentando que os planos de praia são "os instrumentos de planeamento territorial que disciplina os usos de praias especialmente vocacionadas para utilização balnear", como é o caso desta, a Agência Portuguesa do Ambiente diz que “conforme o plano de praia de Almargem, para a Unidade Balnear 2, ficou prevista a instalação de apoio de praia simples com equipamento associado”, com as mesmas caraterísticas que o equiparam a restaurante.
Restaurante relocalizado para mitigar risco de galgamento do mar
Segundo as APA, "a solução para o estacionamento foi genericamente aprovada, por se enquadrar nas orientações constantes da ficha de praia do POOC, com soluções para conter a circulação de veículos, não permitindo o acesso até à proximidade da arriba." A Agência revela "que dada a taxa de recuo da linha de costa neste troço do litoral" indicou a relocalização do restaurante “para uma zona mais recuada." O novo local “resultou de entendimento partilhado” entre a Câmara Municipal de Loulé e a Agência Portuguesa do Ambiente (APA)/Administração da Região Hidrográfica do Algarve (ARH Algarve), “com vista à mitigação do risco de galgamento oceânico", explica a CCDR-A.
A APA refere que "face à sensibilidade da área e aos objetivos de proteção dos valores naturais” daquela Reserva Natural, o projeto “obteve parecer favorável condicionado”. Câmara e Ambiente consideraram que “o requerente deveria apresentar um Plano de valorização do espaço que contemplasse a remoção das invasoras e exóticas existentes e plantação de árvores em compensação (em dobro) pelo corte”, que se traduz no “Plano integrado de recuperação Paisagística para apoio de praia Almargem Fonte Santa”, apresentado pelo promotor.
O plano, “em implementação”, aduz a APA, prevê também “a manutenção da permeabilidade do solo na área do estacionamento, com limpeza e regularização do mesmo, sem movimentos de terras ou operações de grandes dimensões”, o que é contrariado pelos autores da petição. “Desde o início das obras, observámos cerceamento da área privada, movimentação de terras em larga escala, destruição de vegetação nativa e a remoção de árvores não apenas no terreno do projeto, mas também fora dele, comprometendo ainda mais o ecossistema da reserva”, alegam.
Segundo a AP, a obra prevê “a otimização da distribuição das áreas de estacionamento e respetivos acessos, com o aproveitamento das zonas de clareira existentes e com o mínimo abate de árvores”. Será necessário abater 23 pinheiros”, diz a CML, anunciando que serão plantados 133 sobreiros na área de intervenção como medida compensatória, estando ainda prevista a plantação de mais de três mil arbustos, numa área de 12.464 metros quadrados.
“O Plano prevê também a supressão do acesso motorizado e pedonal ao local de forma desregrada, bem como a eliminação de situações de campismo selvagem”, argumenta a autarquia, garantindo que “os serviços técnicos têm vindo a acompanhar todo o processo desde o início, bem como alterações decorrentes do andamento dos trabalhos” que possam surgir. “Caso seja necessário efetuar mais visitas ao local do que o previsto legalmente para os serviços de fiscalização, serão encetados os procedimentos necessários para o efeito”, acrescentou. A APA diz também que “tem acompanhado os trabalhos neste troço costeiro, nos termos das suas competências e parecer emitido.”
Hotel autorizado com alvará de 1971
A petição visa também a “consideração da licença do hotel, uma vez que se baseia num loteamento antigo que nunca foi reavaliado à luz das novas regulamentações ambientais”. Contactada pelo JN, a APA disse que “desconhece qualquer pretensão” nesse sentido, enquanto a CCDR-A informou diz ue “não dispõem de informação processual com precisão temporal e detalhe administrativo suficientes para resposta”, remetendo esclarecimentos para a CML.
A autarquia diz que "a área que se encontra passível de ser edificada na Reserva é a delimitada como solo urbano, Espaços de Uso Especial – Espaços Turísticos", correspondente ao hotel do Alvará de Loteamento 5/1971, "cujos direitos adquiridos não poderão ser afetados pela sua integração na área da Reserva", tal como expresso no n.º 4 do artigo 2.º (Criação e Limites Geográficos) do Regulamento de gestão da Reserva Natural Local da Foz do Almargem e do Trafal (Nº 906/2024). Esta posição tem “em consideração um parecer jurídico da Professora Doutora Paula Oliveira" sobre as consequências da tomada de decisões e/ou prática de atos administrativos "que possam colocar em causa (ou mesmo retirar) direitos adquiridos e consolidados na esfera jurídica dos particulares, consagrados em alvará de loteamento válido e eficaz, que porventura poderão conduzir ao pagamento de indemnizações" aos particulares.
Quanto à pretensão dos autores do manifesto, de que a classificação da área como reserva “deveria ter levado a uma reavaliação do impacto ambiental e urbanístico”, a CML diz que "o regime específico não prevê a sujeição a Avaliação de Impacte Ambiental – AIA para operações urbanísticas previstas em loteamentos titulados por Alvarás, independentemente da data da sua criação".
Projeto levanta dúvidas em relação a leis europeias
Segundo o manifesto, o ICNF, entidade responsável pela conservação da biodiversidade e pela gestão de áreas protegidas, não foi consultado nem deu parecer favorável à construção. “Este podia ser um erro processual significativo”, dizem, notando ainda que “além da questão sobre possíveis conflitos em nível nacional, este projeto pode também levantar dúvidas quanto à conformidade com as diretrizes ambientais da União Europeia, nomeadamente a Diretiva Habitats (92/43/CEE), a Diretiva Aves (2009/147/CE) e a Diretiva de Avaliação de Impacto Ambiental (2011/92/UE, alterada por 2014/52/UE).
Estas diretivas obrigam os Estados-Membros a proteger ecossistemas sensíveis e a garantir que qualquer projeto com impacto ambiental seja sujeito a uma avaliação rigorosa – algo que não parece ter sido devidamente realizado neste caso.
“A Comissão Europeia tem reforçado que a conservação ambiental deve ser uma prioridade e os Estados-Membros devem seguir a Lei Europeia do Clima (Regulamento 2021/1119) para reduzir a destruição de áreas naturais. “Exigimos que este caso seja revisto à luz da legislação da União Europeia, e que a Comissão Europeia e outras entidades competentes sejam notificadas para garantir que Portugal cumpra os compromissos ambientais assumidos.”