Em Porto de Mós, uma freguesia estreia o programa nacional para organizar a floresta. Pela mão de gente da terra, Alqueidão da Serra quer voltar a ter o território produtivo e com mais vida.
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Do Cabeço do Zambujeiro, é fácil perceber a dimensão do trabalho que a Junta de Freguesia de Alqueidão da Serra, concelho de Porto de Mós, tem pela frente. Ali, num baldio da Junta, o terreno está limpo e começam a medrar uns pinheiros-bravos plantados, há uns anos, por crianças. Mas à volta, nas encostas fronteiras e além delas, o que há são matos bravios, pinhal e eucaliptal desordenado, carvalhos e oliveiras ao abandono, campos invadidos por silvas e povoações entaladas entre as árvores.
"Se aqui passa o fogo, vai tudo, é bom que as pessoas fujam". Em Covas Altas, no largo do Tear da Mariana - enquanto a própria Mariana espreita o movimento, da soleira da porta -, Miguel Santos, nascido e criado na freguesia, aponta para a proximidade de árvores e matos e imagina a chuva de faúlhas que inundaria telhados e frestas de janelas, se um incêndio lá chegar.
Covas Altas é uma das várias povoações da freguesia em risco muito alto de incêndio, uma classificação que permitiu a Alqueidão da Serra ser uma Área Integrada de Gestão de Paisagem (AIGP), um programa governamental que quer pôr um ponto de ordem num território deixado ao abandono por sucessivas vagas de imigração, para o estrangeiro e para o litoral.
A ideia foi fermentada por Miguel Santos e por Francisco Cordovil, professor do ISCTE aposentado e casado com uma filha da terra, nas horas de viagem até zonas de caça, no Alentejo. Quando a estrutura das AIGP foi publicada, já Miguel Santos tinha imaginado como transformar os 2200 hectares da freguesia de Porto de Mós, já no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros. O objetivo, conta, vai muito além da proteção contra incêndios. "Queremos recuperar a terra para a agricultura, aumentar a biodiversidade, criar rendimento para as pessoas" .
A meio da estrada, encontra o exemplo ideal. Do lado de cá do monte, as oliveiras estão tratadas, o terreno limpo. Mas na encosta em frente, onde resistem os muros erguidos para segurar a terra fértil em torno de cada árvore, o abandono é visível. "O dono deste terreno trata dele e é assim que devia ser em todo o lado".
"Um trabalho monstro"
O caminho para lá chegar é, todavia, ainda mais pedregoso do que estas terras calcárias. O primeiro passo está dado: a candidatura da Junta de Freguesia está aprovada e a assinatura do contrato prometida para breve. Só depois começará o "trabalho monstro" propriamente dito, como diz Miguel Santos. Logo à partida, saber quem são os donos da terra.
O território de Alqueidão da Serra já está cadastrado, a primeira das vantagens que a freguesia tem sobre outras AIGP. Mas muitas propriedades estarão ainda registadas em nome de quem já há muito morreu. "Espero que possamos ter um sistema do tipo cabeça de casal", para não ter de persuadir todos os herdeiros a aderir ao projeto, diz Miguel Santos.
É aqui que Francisco Cordovil identifica a segunda grande vantagem de Alqueidão da Serra. Os habitantes da freguesia tenderão a aderir se o projeto lhes for apresentado por alguém da sua confiança. E "toda a gente conhece o Miguel". O próprio ri-se e acrescenta: "Se não me conhecerem, chega dizer que sou filho do Tóino Batata".
Para inspirar confiança, Filipe Baptista, presidente da Junta, admite começar o projeto nos terrenos baldios geridos pela Junta. "Se as pessoas virem os benefícios, ficarão mais disponíveis para aderir". Esta é a terceira vantagem da freguesia: os baldios da Junta somam um terço do território. A terra da associação de caça, a que Miguel Santos preside, também já está lavrada, até para alimentar aves cinegéticas.
Faltam os outros dois terços e um número incontável de nanoproprietários, muitos com troços de terra de poucos metros quadrados, espalhados pela freguesia. O Centro e o Norte são o fulcro do minifúndio, mas Miguel Santos não planeia usar energias no emparcelamento para aumentar a dimensão média das propriedades. "Não queremos agricultura extensiva".
Zambujeiros e carrascos
O que se planeia para Alqueidão da Serra é o inverso da agricultura industrial e em larga escala. É dar aos agricultores um rendimento que os convença a não abandonar ou até a regressar à terra. Para isso, diz Francisco Cordovil, é preciso remunerar os serviços ambientais e que as ajudas da Política Agrícola Comum deixem de ser pagas sempre aos mesmos e se dê acesso a pessoas como Paulo Marto, 47 anos e dono de um rebanho e nacos de terra.
Trabalha na Câmara de Porto de Mós e, nos tempos livres, é agricultor para autoconsumo. Do rebanho de doze ovelhas e seis cabras tira carne e leite (para os queijos da mãe) e uma média de 20 euros por cada uma, do Ministério da Agricultura. Os 360 euros por ano "quase não compensam a burocracia", diz. Da terra, onde vai rodando sementeiras, não recebe apoios.
Multiplicar agricultores como Paulo Marto é o plano para Alqueidão da Serra. Por exemplo através do olival, diz Miguel Santos, enquanto aponta para uma oliveira-brava (um zambujeiro) asfixiada por matos. É uma árvore nativa de Portugal e que pode viver milhares de anos. "Os espanhóis já estão a fazer azeite deste tipo de oliveira e a vendê-lo como produto gourmet". Logo à saída da vila, veem-se oliveiras-bravas e carrascos, um carvalho arbustivo com folhas recortadas em picos, como as do azevinho. São árvores autóctones que o projeto quer multiplicar, capazes de sustentar uma biodiversidade impensável nas manchas de eucaliptos comuns em muitas das freguesias próximas.
Terras trabalhadas e floresta limpa pelas cabras e ovelhas diminuem a probabilidade de incêndios, como o que há uns 18 anos consumiu toda a região. Prova disso são as carcaças de árvores queimadas à entrada do Cabeço do Zambujeira. No topo do monte, o chão de terra castanha-escura e o verde das árvores são a prova de que um espaço cuidado pode travar o fogo.