Apenas os recintos de diversões e o empenho dos moradores das zonas emblemáticas lembram a celebração da cidade.
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O Porto suspira quando se fala em São João. Sente-se a falta da azáfama que antecede os festejos da noite de 23 de junho, o enfeitar das ruas com fitas coloridas e balões de papel. Da música de baile a entoar pelas janelas ou da improvisada instalação sonora. Do fumo e do cheiro da sardinha assada a serpentear pelas vielas. Da canalha a correr pelas ruas, a subir e a descer escadas, e dos velhos à janela.
Os portuenses temem pela perda de toda uma vivência, abalada pela pandemia, mas não só. Sem os festejos sanjoaninos a população dá-se à tristeza e diz que "o Porto está a perder a sua alma".
FONTAINHAS
Os carrocéis lembram a festa
"É uma tristeza. Está bem que não pode haver grandes ajuntamentos de pessoas, mas o Rui Moreira podia ao menos colocar aqui umas luzes e música para lembrar a festa, como acontece noutras terras", diz Fábio Teixeira, enquanto monta uma barraca em madeira para comes e bebes. Está afastado do recinto de diversões criado pela Câmara do Porto, controlado pela Polícia Municipal e que tem a capacidade máxima de 750 pessoas. É lá que Joaquina e Francisco têm montado o Pavilhão Lavrador. Andam juntos pelas festas e romarias há 35 anos. "Sou de Guimarães e vendia cutelarias e ele estava no pavilhão do pai", conta. Começaram a namorar no Senhor de Matosinhos.
"A sardinha está boa e a adesão das pessoas tem sido fantástica. Tal como nós, estavam fartas de estar em casa. Só é pena é termos de fechar às 18 horas no dia 23, mas pronto já foi bom termos estes dias", diz Joaquina que relembra com saudade outros anos de festa nas Fontainhas, mas também noutras grandes romarias como a Agonia, em Viana, o Rosário, em Gondomar, ou a Senhora da Pena, em Vila Real.
"A festa começou a decair logo que apareceram os martelos de plástico, há uns 50 anos. Nem toda a gente gosta daquele barulho!" - Luís Cruz, morador nas Fontainhas
Na varanda de casa, Maria de Fátima e Luís olham para o largo onde brincaram em crianças e da animação ali vivida. "O São João era aqui. Até de madrugada. De manhã eram só sapatos e malas perdidas pelos cantos pois era tal a multidão que uma pessoa nem se podia mexer", conta Fátima. Havia animação, barulho e muita pancadaria à medida que a noite seguia e o álcool toldava o entendimento. "Com o espalhar da festa pela Baixa e pela Boavista e com a construção da Ponte do Infante, perdeu-se muito da magia das Fontainhas", considera Luís. "E depois isto está a ficar vazio de gente. Só se houve falar inglês e, sabe como é, as tradições vão-se perdendo", explica a mulher.
S. VÍTOR
Sardinha assada só para os moradores
"Cuidado com a cabecinha porque estas casas foram feitas para gente pequenina", diz Dona Quitéria aos muito altos turistas polacos que visitam a Ilha do Galo Preto, em S. Vítor, outro reduto das festas sanjoaninas no Porto e local de passagem de todos os foliões que ali são recebidos de braços abertos pelos moradores.
"Em S. Vítor, vai haver São João, mas cada um assa as suas sardinhas, sem aquela união que existia. São regras que temos de cumprir" - António Ferreira, Ilha do Galo Preto
A zona comum da ilha já está enfeitada graças ao entusiasmo de Domingos Ferreira e da filha Paula. Mas longe do colorido de anos anteriores à pandemia. Quase todos moram ali há mais de 50 anos e garantem que "a farra é sempre a mesma e quem aparece é convidado a comer sardinha e a beber uma pinga de vinho". No entanto, "tal como no ano passado não pode haver nada disso", alerta António Ferreira. Quitéria, de 84 anos, acabou de mostrar a sua casa aos turistas e regressa. Veio morar para a ilha quanto tinha dois anos. Vive só por nunca ter superado um desgosto de amor na juventude. Lembra-se do primeiro São João em que houve música na ilha, quando uma vizinha comprou um rádio. Hoje diverte-se a receber estrangeiros. "Isto agora é muito triste", confessa.
SÉ
Enfeitada mas sem multidões
À porta da Estação de São Bento uma pequena mancha verde chama a atenção. É a banca de manjericos de Marlene Morais. Há pouco movimento pois poucas vendedoras concorreram ao concurso de lugares cujo regulamento não permitiu o acesso das doceiras "que traziam mais animação". Depois do fogo de artifício, na Ribeira, a multidão subia aos aliados e era nessa altura que se vendia mais porque as pessoas esperavam pelo orvalho da madrugada para levar para casa o manjerico fresquinho. "São os homens que compram mais, para oferecerem às mulheres. Ou então as netinhas para dar às avós que não saem de casa com medo da covid", explica Marlene.
"Agora, na Sé, nem iluminação há! Antigamente a Câmara ainda punha luzes desde o café do largo até lá acima, à Casa da Mariquinhas" - Ângela Ventura, moradora no Largo da Pena Ventosa
As multidões da noite de São João também já não sobem à Sé, mas Lina Rocha mantém a tradição e é a das mais ferrenhas moradoras a enfeitar o Largo da Pena Ventosa. "Desde o ano passado que a festa é só com os meus filhos e netas, mas antes era com toda a gente que aqui mora", explica à janela, a retorcer-se de dores provocadas pela vacina contra a covid.
A vizinha Ângela Ventura confirma e diz que nessa noite assavam cedo as sardinhas caso contrário não jantavam por não haver espaço na rua para colocar os fogareiros. Tirando o altar das Fontainhas com a representação do batismo de Cristo, não se veem cascatas.
MIRAGAIA
Com saudades das festas do passado
"Era tão bonito! Nasci aqui em Miragaia e moro junto à Fonte da Colher, onde costumavam montar o palco. Era animação toda a noite. Isto por causa da covid até faz pena. Prefiro pensar que nem há São João", conta Maria Silva, abrigada da chuva nas famosas arcadas, anormalmente despidas de adornos, a não ser à porta da Associação Recreativa e Desportiva de S. Pedro de Miragaia que lembra a data com alguns balões de papel.
"Miragaia precisa de mais animação para chamar mais gente. O problema é que o presidente da junta só olha para a Ribeira" - Fernanda Martins, Casa Mara
"Estou mesmo muito desanimada e, depois com todas as condicionantes que há em termos de horários, nem sei se vamos estar abertos", refere Fernanda Martins que, com o marido, gere a Casa Mara. Uma coisa é certa. "Não vou encomendar sardinhas para quê para ninguém as comer?", acrescenta. Naquela que é considerada "a noite mais longa" do Porto vendia sobretudo cerveja. Eram aviados 40 barris ou mais em poucas horas tal era a clientela.
A freguesia e a noite de São João vivem hoje dos forasteiros e muitos dos velhos residentes já morreram ou foram viver para outros locais. "Está a ver aquela casa ali? Foi onde nasceu o meu marido. Viviam ali 50 famílias e agora é um hotel", aponta a comerciante.
Tradições
Manjericos
A oferta de manjericos continua a ser uma das tradições do S. João. Os preços variam de acordo com o tamanho, entre os três e os 20 euros. A venda do alho-porro, devido à pandemia, está proibida.
Balões de ar quente
Os ruidosos martelos de plástico, introduzidos a partir dos anos 70, dão lugar ao álcool-gel e restam para festejar os balões de ar quente.