Ruas de Costa Cabral e S. Roque da Lameira, no Porto, concentram muito comércio tradicional. Seis histórias de quem persiste e resiste há décadas.
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Um olhar curioso espreita pela montra. "Precisa de alguma coisa?". A resposta à delicada pergunta de Maria Angelina Jambas não pode ser outra que não entrar na mercearia. E o convite parece estender-se a mais freguesas: em dois minutos, entraram quatro na loja. "Ainda não tinha aberto e já tinha clientes à porta", diz a comerciante, há 21 anos na Rua de Costa Cabral, no Porto. É a artéria mais longa da cidade e concentra muito do comércio tradicional. A ela junta-se a Rua de São Roque da Lameira, com perspetivas de que a reconversão do antigo matadouro ajude a recuperar os tempos áureos.
Todos aprenderam a arte de bem tratar os clientes e dizem ser isso que mantêm os negócios de porta aberta, apesar de ser um trabalho inglório: "Não se ganha para a despesa". Alguns dizem "não saber fazer mais nada", mas é o sentimento de pertença ao setor que não lhes altera o sentido do caminho que percorrem há décadas.
Aos 13 anos já Maria Angelina fazia escola ao lado da mãe, também numa mercearia em Valongo. A aluna fez-se professora e aos 34 anos assumiu as rédeas do número 46 de Costa Cabral. A casa somava meio século.
"Gosto do trabalho e da relação com as pessoas. Claro que são os clientes fiéis que suportam a casa, mas este é um sítio de passagem e num dia podem entrar 20 pessoas que nunca vi", relata. Diz, por isso, que "não pode queixar-se", mas lamenta a falta de movimento.
"Às vezes passavam aqui cento e tal pessoas. Não vejo [o negócio] condenado, mas agora o que vale são as rendas antigas. Com as atuais, seria insuportável". Se lhe perguntam qual é o segredo, diz que não há. Mas logo sugere: "Só se forem as azeitonas. O tempero é meu".
"É como ir à tasquinha"
Filomena Miranda tinha duas alternativas: ou tomava conta da loja de fotografia ou a casa ia fechar. Na verdade, esta última não era uma opção. Tinha 19 anos quando começou a trabalhar lá. E não demorou muito a ser o rosto de "O perfil", a antiga "Foto-Adélio". "Ainda era muito nova, mas sabia tudo e achei que tinha vantagem".
Ao som do pousar de um pé no esguio corredor castanho que conduz ao estúdio de fotografia, Filomena reage num rápido levantar da cadeira. Ao fundo, ouve-se: "Bom dia. Em que posso ajudar?".
Ensombrada por uma eventual venda do prédio, que até agora parece não se concretizar, admite que "em seis ou sete anos" poderá reformar-se. Até lá, continuará "a acompanhar os tempos" e "a atender os clientes da melhor forma" no número 50, em Costa Cabral. Um tratamento de tal forma cuidado que há quem lhe diga: "Não tome a mal, mas vir aqui é como ir a uma tasquinha onde se come uns bons petiscos".
"Vêm porque é a casa antiga. Não é pela modernice. Sabem que são bem atendidos". E porque Filomena ainda converte cassetes super8 ou VHS em MP4.
porta aberta há 40 anos
Outrora conhecida pelas sapatarias, contam-se pelos dedos as lojas do setor que resistem em Costa Cabral. Uma delas é a Jóina, aberta por Josefina Ferreira em 1982. "Os meus sogros tinham uma fábrica de sapatos. Eu e o meu marido abrimos a loja", conta, salvaguardando que o espaço não é arrendado. "Isso ajuda. Se não, era mais complicado".
E todos os dias entra alguém na loja? "Claro. Mas é uma pescadinha de rabo na boca. Para as lojas estarem atualizadas e terem bons produtos, precisam de mais clientes". Meio ano depois de abrir a loja, Josefina contratou Maria José Vasconcelos. Vizinhas, permanecem juntas até hoje.
"gerações de clientes"
Há 93 anos que "A Cafezeira" cria "gerações e gerações" de clientes. Quem o diz é Rosa Maria Silva, funcionária da casa há 14 anos, justificando o sucesso da casa com "uma boa gestão".
"Talvez seja essa a primeira palavra certa. E procurar, dentro do que é antigo, modernizar". Às explicações de Rosa junta-se uma voz vinda da entrada: "E o atendimento, que é do melhor. Por isso vimos cá há 30 anos". É Ana Fernandes, de 63 anos.
A fiel cliente desfaz-se em elogios a Rosa Maria e, envergonhada, a funcionária pega nos dois sacos de café já reservados para Ana e coloca-os em cima do balcão. "Esta senhora leva uma mistura de café, que é para fazer com leite", explica Rosa, que aconselhou a escolha. E fá-lo sempre. "Também há chás que o cliente quer porque gosta de beber, mas outros ajudam a certas patologias e temos que ter esse conhecimento", reconhece. "Desde 1929, esta casa nunca parou".
"pérola" com 120 anos
Qualquer um, ao entrar na "Pérola de S. Roque", embarca numa viagem ao passado. As prateleiras trabalhadas e pintadas de bege são as mesmas desde que a loja abriu, "há 120 anos". Na rua já não há letreiro com o nome da mercearia: "A licença é muito cara". "Deve ser das mais antigas da cidade do Porto e ainda está com a porta aberta", observa Bernardo Alves. Os garrafões de vinho tinto na montra são exemplo vivo dessa realidade, já distante.
Há 65 anos que trabalha lá. De meio caixeiro (aprendiz de caixa) passou a gerente, subiu a sócio e é hoje proprietário da mercearia centenária na Rua de S. Roque da Lameira, no Porto.
"Vim para isto com 11 anos e tenho 82", diz, entre contas, e num levantar de sobrancelhas. De Mesão Frio, Vila Real, Bernardo fez vida no Porto. "Por intermédio do padrinho ou de outra pessoa que conhecia alguém, vínhamos de maleta na mão e com os trapos dentro. Ficávamos três anos entregues ao casal que tinha a mercearia, aprendíamos, passávamos a meios caixeiros e íamos embora", recorda. Foi "criado no negócio", por isso ainda resiste. Mas "qualquer dia" fecha. "Não se ganha para a despesa".
"conservar os clientes"
Também Albino Ribeiro passou de funcionário a patrão. É ele quem está à frente do cabeleireiro "Quimalino", na Rua de S. Roque da Lameira. É a junção dos nomes dos três antigos sócios: "Joaquim, Manuel e Lino".
Albino estreou-se no setor com 15 anos, por mero gosto, e admite "não saber fazer mais nada". À semelhança do que aconteceu em Costa Cabral, também ali o movimento caiu. "O negócio faz-se com muito mais dificuldade", admite.
O segredo? "Conservar os clientes", diz sem rodeios. Acácio Carvalho, cliente e amigo, confirma: "É a única pessoa a quem sou fiel. E eu uso o cabelo rapado".