Primeira sala de consumo vigiado de drogas: "Não gosto que os outros vejam esta miséria"
Primeira sala de consumo vigiado de drogas do país abriu em Lisboa. Adesão superou expectativas, com 614 utentes inscritos.
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Quem entra no número 14 da Rua da Quinta do Loureiro, no bairro com o mesmo nome, em Lisboa, parece à primeira vista que está num espaço de convívio. Mas não. Ao percorrer os corredores vê-se pessoas a consumir estupefacientes em salas próprias para o efeito. Estamos num equipamento de consumo vigiado de drogas. É o primeiro fixo do país e em quatro meses teve "uma adesão brutal". "Esperávamos 200 pessoas, mas temos 614 inscritas, uma média de 110 consumos diários", diz Roberta Reis, técnica da Ares do Pinhal, instituição que gere a estrutura.
Longe dos olhares repressores de quem passa por eles enquanto consomem na rua, os utilizadores do espaço elogiam sobretudo "a tranquilidade, segurança e condições de higiene" em que ali consomem. "Na rua temos de estar sempre alerta, a espreitar pelo ombro e a fugir à Polícia. Não gosto que os outros vejam esta miséria, principalmente crianças. Aqui também há menos risco de propagação de doenças e se nos sentirmos mal, ajudam-nos", explica Nélson, 44 anos.
Experimentou heroína pela primeira vez ainda adolescente, mas após ter filhos deixou a droga e esteve 16 anos sem consumir. Recentemente teve uma recaída, após um desgosto amoroso, e começou a fumar cocaína. "Tentei matar-me com comprimidos, mas não consegui. Após cinco meses de baixa, percebi que não conseguia recuperar, fui honesto e despedi-me do meu emprego", conta, após sair da sala de consumo fumada, onde seis homens fumavam cocaína e heroína quando o JN visitou o espaço.
Mais riscos na rua
Do outro lado da sala de consumo envidraçada, um monitor supervisiona-os e vai dando indicações através de um intercomunicador. "Se vir que partilham materiais digo para não o fazerem. Informo-os ainda quando podem sair, ao final de 40 minutos", explica Bruno Mourão. São os utentes que levam as substâncias e, na vulgarmente conhecida por "sala de chuto", recebem materiais assépticos novos. Evitar a transmissão de doenças ou reduzir os danos causados por um consumo mal feito são os principais objetivos do espaço.
"Há mais riscos na rua, podem roubar-lhes o consumo ou sofrerem algum tipo de violência. Aqui têm mais suporte. Se o consumo endovenoso não for realizado de uma forma correta pode provocar infeções ou abcessos, explica Roberta Reis, coordenadora técnica do espaço e psicóloga. Aqui também se previnem overdoses, "negociando-se a dose e os tempos de consumo". "Há uma educação para se fazer um consumo menos prejudicial e agressivo, indicando os pontos de injeção mais corretos, por exemplo".
Os consumos controlados, garantem alguns dos utentes com que o JN falou, "ajudam a diminuir o impulso de consumir". "A ansiedade que sentimos lá fora leva-nos a consumir mais", assegurou um deles.
As salas de consumo assistido estão previstas na lei desde 2001, mas só agora foram implementadas.
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8 enfermeiros
e 11 técnicos, entre psicólogos e assistentes sociais, trabalham na sala que está aberta todos os dias.
85% dos utentes
são do sexo masculino e têm uma média de idades de 44 anos. Cerca de 25% são sem-abrigo.
Valências
Na sala de consumo há um espaço para ver televisão, jogar e utilizar computadores. É ainda possível tomar banho, lavar roupa e pedir roupa nova.
Entrevista a Elsa Belo, diretora da Ares do Pinhal
A equipa é suficiente para acompanhar as 614 pessoas inscritas?
É insuficiente. Se queremos fazer este trabalho com mais qualidade tem de se investir mais neste projeto, mas há limitações financeiras. Precisávamos de mais seis técnicos superiores. Neste momento, somos três.
É preciso um acompanhamento mais personalizado?
É fundamental fazer-se um acompanhamento psicossocial mais específico sobre a situação individual de cada um, com mais tempo, mas a equipa é curta. Neste momento, estamos a olhar para o grupo de pessoas.
A sala de consumo vigiado diminui os consumos?
Temos a perceção de que o consumo baixa, na medida em que as pessoas passam mais tempo connosco e vão menos para a rua. Não é esse o nosso primeiro objetivo, mas é consequência da presença desta resposta.
Qual o principal objetivo?
Reduzir os danos, permitir o contacto com uma equipa especializada que os ajuda a conhecerem o seu estado de saúde e informa-os onde podem fazer tratamentos especializados. Intervimos atempadamente e não permitimos que o estado de saúde piore. A adição é um problema de saúde crónico, o objetivo é manter a pessoa o mais estável possível.