Em Gaia, há um asilo para refugiados. Neste momento, vivem no centro de apoio do JRS (Serviço Jesuíta de Apoio aos Refugiados) 27 utentes. Têm todo o tipo de ajuda: jurídica, social, emocional, desportiva e cultural.
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São 10.30 horas de uma quarta-feira qualquer e para lá de uma dezena de refugiados sentam-se à volta de uma mesa rectangular e ouvem atentamente a professora Rosário sobre meios de transporte. Decorre uma aula de Língua Portuguesa e às voltas com desenhos de autocarros e barcos estão pessoas que pediram asilo a Portugal e agora devotam a sua vida no centro da organização não governamental JRS (Serviço Jesuíta de Apoio aos Refugiados), em Gaia. Vêm do Tadjiquistão, do Senegal, de Marrocos, da Colômbia, do Bangladesh.Têm entre os 20 e os 65 anos. Vivem um novo capítulo das suas vidas. Para trás ficaram as pegadas de uma vida devastada, fugidia, de medo, encarando o futuro com a certeza de uma mochila e a metafísica da esperança.
Sozinha e a pé nos trilhos entre a Macedónia e Portugal
Salma, nome arábe e improvisado para esta reportagem, para proteger quem já sofreu mazelas suficientes da vida, não participa na aula, refugia-se no quarto. Salma tem 35 anos, nasceu na Tunísia e está há sete meses neste centro de apoio a refugiados. Porém, a história de Salma é mais do que esta frase. Tem 3.637 quilómetros. Muitos a pé. E começou com um casamento fracassado, seguido de maus tratos, na Macedónia. Parca em palavras e socorrida pela tradução da amiga marroquina Rania, de arábe para inglês, entendemos a tristeza que lhe esfrega o rosto em jeito de lágrimas. “Deixei a Tunísia e fui viver para a Macedónia”, começa por contar vagamente ao Jornal de Notícias com um olhar muito envergonhado, colocado fora da janela como que a ver o passado. “Casei com um homem que não era da minha religião”, o gatilho perfeito para dar cabo da harmonia da família de origem. O que seria para Salma um conto de fadas - casar porque estava “apaixonada” - acabou por se firmar como um filme de terror. O casamento não deu certo, a rotina na Macedónia foi um “pesadelo”. “Fugi da Macedónia e vim para Portugal”. No centro, Salma aprende português e sente-se “segura e em casa”. “Rezo e medito no meu quarto, vou à loja social, quando preciso de alguma coisa e faço muitas atividades”, descreve o seu dia a dia, até arranjar um trabalho, um documento que lhe dê acesso ao sonho de “viver em paz, encontrar um trabalho, casar e ter um filho”. Salma apoia-se nas mãos como uma retenção das lágrimas quando fala da família. Do que mais sente falta na Tunísia? “As saudades que sinto da família é o que mais dói”, finaliza.
“Sho” fugiu do regime tirano do Tadjiquistão
Vamos chamar de Sho ao tajique que está há meia dúzia de meses no centro de apoio a refugiados. É alto, simpático, cordial. Carrega 62 anos de vida. Quando se apresenta, sorri às perguntas, mas logo o semblante se põe sisudo quando recorda o regime político da sua terra natal: “No meu país, o poder está nas mãos de uma família, é um regime autoritário e tirano”. “A minha situação tornou-se muito crítica”, refere o professor universitário de Filosofia e História, que se servia das aulas para dar voz à democracia perante centenas de alunos. O regime político do Tadjiquistão não apreciou esta ousadia. “Na minha aldeia, no fim de 2022, muita gente foi morta, pessoas inocentes, assassinadas pelo governo, postas na prisão, muitos advogados, jornalistas, representantes da sociedade civil”, relata ao JN. Os serviços secretos de um país vizinho alertaram Sho que estaria a ser vigiado e que estaria numa “wanted list” do Tadjiquistão e deram-lhe três opções: “Ou trabalharia para eles, ou lhes daria dinheiro ou enviavam-me de volta ao meu país” (na altura, Sho estaria a dar aulas fora do país, não revelamos onde por questões de segurança). Porém, Sho fintou as ameaças e aproveitou uma conferência internacional num outro país, na qual era orador convidado e fugiu. “Foi uma longa viagem”. De avião, Sho seguiu pela Geórgia, depois Polónia e só parou em Portugal. A mulher e os dois filhos, de 30 e 31 anos, ficaram nas suas vidas no Tadjiquistão. Volta e meia, “eles e o meu irmão são chamados à polícia do regime para serem questionados sobre o meu paradeiro. Nunca foram violentos com eles, mas é uma preocupação constante”. Para já, no centro, Sho aprende português, aguarda o veredicto do Regulamento de Dublin e trabalha num estudo sobre a fenomenologia da política. “Com o processo aberto contra mim pela ditadura do meu país é impossível regressar no imediato. Estou descrito como terrorista, separatista”, remata.
Uma marroquina refugiada da guerra na Ucrânia
Rania de 27 anos é a única que dá a cara e nome a esta reportagem. É um caso de sucesso, e por isso, toda ela é um sorriso. Foi o sonho de estudar arquitetura que levou Rania a Kharkiv, na Ucrânia, em 2016. Um objetivo interrompido pela invasão russa à Ucrânia. Rania, “em choque”, ficou mais duas semanas por pensar que “seria uma guerra rápida”. Não foi. Não está a ser. Antes de aterrar, sozinha, em Portugal, ainda passou uma temporada na Hungria. Já em solo português, Rania foi acolhia no centro, passou por um processo moroso de legalização por não ser europeia, ainda que fugida de uma guerra na Europa. “Tive de obter um comprovativo de trabalho em Portugal e o título de residência chegou quase dois anos depois”, conta, explicando que como é marroquina não podia pedir o asilo temporário. Rania chegou sem nada, arranjou trabalho, legalizou-se, trabalhou para pagar a universidade. “Entretanto, através de aulas online concluí o curso”, esclarece. Fala algum português. Integrada, o centro convidou-a a trabalhar na equipa que apoia os refugiados. “Neste Centro, sempre me senti em casa e agora estou muito feliz por fazer parte da equipa, tal como um dia recebi ajuda, agora trabalho neste projeto que apoia refugiados”, diz. Quando fixa o futuro, Rania agarra o sonho de se tornar arquiteta, “talvez aliar a arquitetura a algum projeto social de imigrantes”.
E por falar em sonhos? “Todos nós procuramos por algo melhor, para estabilizar a nossa vida, ninguém deixou os seus países por que quiseram, queremos alcançar os nossos sonhos. Ninguém quer deixar as famílias para trás”, manifesta. “ Eu partilho a esperança, com todas as pessoas neste centro, que passam por tantas dificuldades, eu partilho a esperança”, sustenta.
O que é o Serviço Jesuíta aos Refugiados?
O centro de apoio em Gaia é um projeto que existe desde 2022 e pertence à organização não-governamental JRS (Serviço Jesuíta de Apoio aos Refugiados), localizada em Lisboa. É um desígnio de requerentes de asilo em parceria com a AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo). A instituição tem a nível nacional dois centros de acolhimento a requerentes de asilo.
O projeto destinado a refugiados está em exercício desde o ano passado. A organização não-governamental tem dois centros em funcionamento em Portugal: um em Gaia e outro mais a sul, em Vendas Novas. No centro de Gaia trabalham 14 pessoas distribuídas por diferentes equipas: cozinheiras, vigilantes, apoio psiquiátrico e psicológico, apoio jurídico, limpeza. Contam ainda com a ajuda de três voluntários, duas italianas e uma francesa.
Patrícia Martins, de 36 anos, é responsável pela organização de atividades com os refugiados. “Temos muitas atividades culturais, artísticas e desportivas dentro e fora do centro e em parceria com outras associações e entidades para promover uma rede de contactos e para que estas pessoas sintam que a cidade que os acolhe é a sua casa”, sublinha a responsável. Por sua vez, Ariana Sousa, de 41 anos, coordena todo o processo de acompanhamento dos utentes, desde a chegada até à interação no mercado de trabalho. Ariana relata que os refugiados mostram desde cedo uma “forte motivação” logo que pousam a vida no centro. “Tivemos dois jovens do Senegal que começaram as aulas de português, quando chegaram ao centro e as primeiras duas palavras que disseram em português foi “escola e trabalho”, e isso comove muito, porque esta é a busca deles”, destaca.