Dada a falta de mão de obra nacional, grupo de 500 imigrantes já representa 75% dos tripulantes dos barcos na maior comunidade piscatória do país, em Vila do Conde.
Corpo do artigo
Começaram a chegar em 2018 e, cinco anos depois, representam 75% dos tripulantes nos barcos das Caxinas, em Vila do Conde. São 500 indonésios que garantem a sobrevivência da maior comunidade piscatória do país. Em Portugal, aqueles imigrantes (que chegarão aos mil) são já mais de 50% da mão de obra da pesca. Paradoxalmente, mesmo com contrato assinado, não são reconhecidos como pescadores e nem poderiam trabalhar. Mas ninguém cumpre.
Nas Caxinas, quem os leva a bordo diz que são "trabalhadores" e "esforçados". A vizinhança garante que são "bons rapazes". Eles dizem que têm "casa, comida, salário bom" e só querem juntar dinheiro para dar uma vida melhor à família que deixaram para trás.
"Nos barcos de pesca artesanal, os indonésios devem ser já cerca de 75% da mão de obra. Dificilmente um barco tem só portugueses", explicou o diretor da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar, João Leite. Os pedidos não param, ainda que hoje a Pró-Maior só represente cerca de 20% dos indonésios que chegam para a pesca.
A frota polivalente - embarcações até 12 metros que operam com várias artes, a uma distância que raramente supera as 20 a 30 milhas (37 a 55 km) da costa - emprega, no país, 66% dos pescadores e pesca mais de 45% do peixe. É aqui que a presença dos discretos homens de pele morena e baixa estatura, que vêm do outro lado do Mundo, mais se nota. No "Fugitivo", em oito pescadores, só o mestre e o contramestre são portugueses. No "Candeias", só o mestre é das Caxinas. Nos dois barcos, há 12 indonésios.
"Não há mão de obra portuguesa! Não há mesmo!", garante José Luís Gomes, que, aos 39 anos, governa o barco do pai, o "Fugitivo". Ali, nas Caxinas, a pesca passa de pais para filhos. A José Luís está-lhe no sangue, mas não vê futuro: "Isto acaba aqui. Agora, até o mar está à venda", atira, referindo-se à proposta para criar cinco áreas de exploração de energias renováveis junto à costa portuguesa.
Ali, na maior comunidade piscatória do país, que há meia dúzia de anos contava mais de 2500 pescadores, os mais novos, fartos de tragédias que, de quando em vez, cobrem de luto as Caxinas e deixam órfãos os filhos da terra, e cientes da dura vida da pesca, "já não querem nada com o mar". Com a crise no setor e as constantes reduções das quotas, os que ainda resistiam trocaram a pesca pelos camiões de longo curso ou rumaram a Espanha e à Irlanda, onde os salários são melhores.
Em 2017, a "debandada" fez parar, por falta de mão de obra, muitos dos barcos da pesca polivalente. Os armadores protestaram bem alto. A Pró-Maior arrepiou caminho, em busca de uma solução. O líder da associação, José Festas (falecido em maio de 2021), encontrou-a a 13 mil quilómetros e, no início do verão de 2018, chegaram os primeiros 200 indonésios. A vaga nunca mais parou e, nas Caxinas, formou-se uma comunidade dentro da comunidade.
14 917 pescadores registados em Portugal, no final de 2021. Só 22,7% têm entre 16 e 34 anos. 64,5% trabalham na pesca polivalente, 14,1% no cerco, 10,8% no arrasto e 10,6% em águas interiores.
"São como nós"
"Quando não estão no mar vão jogar bilhar, fazem torneios de futebol, vão passear para o Porto, vão ao café. São como nós. Só não comem carne de porco", diz José Luís, sorrindo e olhando Saeful Ardani, indonésio de 28 anos, que há cinco, trabalha no "Fugitivo". Nas Caxinas, apesar da enorme barreira da língua (quase nenhum fala português), já ninguém estranha aquela presença vinda do outro lado do Mundo. Vivem juntos, andam quase sempre em grupo, mas "não se metem com ninguém", garante o mestre. Os vizinhos sorriem-lhes à passagem, vão ver se estão bem, vigiam-lhes as casas quando sabem que estão no mar. As crianças acham-lhes graça. As Caxinas, mesmo sem saberem falar a língua deles, acolheram-nos e agradecem. Afinal, foram eles que vieram salvar a pesca.
Têm contrato de trabalho, mas não podem trabalhar
Todos os indonésios chegam a Portugal com o contrato de trabalho assinado, normalmente válido por 18 meses, mas entram nos barcos e, oficialmente, não podem trabalhar. A lei obriga ainda as embarcações a ter 60% de portugueses. Ninguém está a cumprir. Os problemas têm cinco anos e, apesar dos protestos, não se resolvem. "A cédula profissional deles não é reconhecida. Vão a bordo como "observadores" [não marítimos] e não podem trabalhar. Mas se vêm com contrato assinado, não é para fazer férias!", indigna-se o mestre do "Fugitivo". A este problema junta-se a lei que obriga os barcos a terem 60% da mão de obra portuguesa. "Que me digam onde vou buscá-los", continua José Luís Gomes. Em 2018, ficou a promessa da secretaria de Estado das Pescas de criar um grupo de trabalho para estudar o tema. Até hoje, nada. "O meu irmão já pagou multa. Se não há pescadores portugueses, têm de mudar a lei", reclama.
Segundo as últimas estatísticas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no final de 2021 estavam legalmente em Portugal 717 cidadãos indonésios. 299 viviam em Vila do Conde. Seguia-se Lisboa (91), Viana do Castelo (78) e Setúbal (59). A maioria são homens e trabalham na pesca. Em Vila do Conde, os indonésios já são a terceira maior comunidade estrangeira, depois dos brasileiros e dos chineses. Estima-se que, nas Caxinas, sejam já 500, mas a verdade, diz João Leite, da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar, é que, se no início havia uma única via de entrada no país, agora há várias associações e até armadores a título particular a contratar indonésios, pelo que não se sabe ao certo quantos são.
Reportagem
Saeful já construiu uma casa
"Estou bem. Gostar de mestre, tem casa, mandar dinheiro para a família", diz Saeful Ardani. Tem 28 anos e está, há quase cinco, no "Fugitivo". Antes tinha trabalhado na China, em Taiwan e em Espanha. Não correu bem. Aqui, garante, "é diferente, muito melhor". As mãos não param quietas. Saeful está nervoso. O português não é o melhor, mas é dos poucos que já fala alguma coisa. Gosta das Caxinas e do Porto - "ir às compras ao Bolhão" e, quando não vai ao mar, à sexta-feira, rezar na mesquita da Rua do Heroísmo.
"Português difícil", sorri. É de Brebes, cidade banhada pelo mar de Java. O pai tem um barco. Saeful começou muito cedo na pesca do camarão. "Mês bom, poder ganhar 500 euros". O problema são os longos meses em que o mau tempo impede a pesca e as precárias condições dos barcos. Saeful partiu à procura de uma vida melhor. Encontrou-a em Portugal.
Recebe 850 euros por mês (a maioria ganha os 740 euros, mas Saeful ganha mais por ser cozinheiro a bordo). Também tem casa, comida, transporte para o barco e viagens a Java pagas pelo armador do barco. "Já construí casa nova", diz, de olhos a brilhar. Na Indonésia estão o filho de sete anos e a mulher, que não quer deixar a família, nem o país que a viu nascer. Mas Saeful fala com ela "todos os dias". É assim com quase todos. Têm entre 20 e 30 anos. Querem ganhar dinheiro para fazer uma casa, voltar à Indonésia e montar negócio próprio.
Foram "adotados"
Nahludin, de 31 anos, é tio de Saeful. Vivem na mesma casa. São seis, todos do "Fugitivo". Ao lado, no Bairro dos Pescadores, vivem outros seis do "Candeias". Têm televisão, Internet e todas as comodidades básicas. Arrumam a casa, põem a roupa a secar e cozinham. Quando faltam batatas, pão ou carne, enviam mensagem ao armador, que lhes leva as compras.
José Luís, armador, sabe quase tudo sobre Saeful. Ajudou-o a trazer o tio e tem, na tripulação, mais três primos. Saeful já o convidou a conhecer o seu país e a sua família. Nas Caxinas, onde nos barcos de pesca artesanal outrora eram quase todos irmãos, tios e primos, os indonésios foram "adotados": são camaradas na lida e quase família em terra.