Moradores em barracas ao redor da Grande Lisboa enfrentam despejos sem alternativas. Falta de políticas habitacionais deixam milhares na incerteza.
Corpo do artigo
O dia para Inalda e Germano começou cedo. A tempestade Martinho, que deixou o terreno lamacento e escorregadio, não poupou muitos dos tetos erguidos pelos moradores do bairro do Talude, no Catujal, em Loures, e obrigou-os a reforçar a pequena barraca de madeira que construíram. Já não basta o medo constante de novas demolições. "Não estava cá para defender. Ligaram-me para me dizer que partiram a minha casa. Quando vim do trabalho, encontrei a casa toda derrubada", conta a jovem trabalhadora, de 31 anos, a propósito do susto que aconteceu durante o primeiro ano a morar na periferia.
Longe de serem uma realidade do passado, os bairros autoconstruídos continuam a crescer nas margens do rio Tejo. A crise habitacional tem-se agravado nos últimos anos e a realidade deste jovem casal imigrante é um dos reflexos mais visíveis deste fenómeno na Grande Lisboa, que tem ganho força sobretudo nos concelhos de Loures, Almada e Seixal, onde a escassez de habitação acessível empurra centenas de famílias para soluções informais. Muitas não têm eletricidade, água potável ou saneamento.
"Depois da pandemia, o aumento foi muito grande porque muitas pessoas perderam completamente o trabalho e deixaram de conseguir pagar casas", sublinha Maria João Costa da Associação Habita. Inalda e o marido fizeram parte da grande onda de construções em 2021.
Vindos de São Tomé, deparam-se com uma renda "muito alta" e um rendimento na área da limpeza insuficiente para garantir um teto. "Cheguei, achei que aqui era um bom país, mas é difícil", confessa Inalda, cabisbaixa. Não procurou ajuda formalmente, mas "se a casa acabar" espera que possa entrar numa resposta social.
Proteção não está garantida
Já por essa altura, a Câmara de Loures começou a intervir. "Conseguimos impor que, no mínimo, tivessem de garantir soluções alternativas para as famílias afetadas", explica Maria João Costa. No entanto, em 2023 as demolições voltaram, deixando mulheres e crianças na rua. "As casas são ilegais, mas a Lei de Bases da Habitação diz claramente que o Estado não pode desalojar pessoas sem assegurar previamente uma solução habitacional. O que vemos, na prática, é que essa proteção não está a ser garantida".
Maria passa apressada com dois sacos de roupa lavada. Segue para a casa da filha, onde passa grande parte do dia a tratar das lidas domésticas, para assegurar que nada acontece. "Vim agora só para ficar aqui porque ela tem de ir para o trabalho para sustentar as crianças", conta a são-tomense de 62 anos. Veio para junto da filha em Portugal em 2015. Na altura lutava contra um cancro e procurava iniciar tratamentos, quando a filha vivia ainda "numa casa de renda", que o senhorio entretanto vendeu.
"A renda tem um preço muito elevado, e ela não tem condições para pagar, porque tem duas crianças". Maria vive ali perto, num "quarto desenrascado", com "muita mistura e confusão". Quando fala da sua "casinha" em São Tomé, os olhos enchem-se de lágrimas, mas, por agora, sabe que o regresso não estará para breve. Tem de ajudar a filha e as netas que estão na escola. "A vida de imigrantes aqui não é fácil. O nosso país também não têm condições e meios financeiros, mas aqui também há problemas", lamenta.
Receiam retirada de crianças
Nas portas de várias barracas ilegais de chapas de zinco, madeira e tijolos, estão a afixar papéis onde se lê: "aqui mora gente". A mensagem é seguida dos nomes dos moradores. Essa tem sido apenas uma das ações da Vida Justa perante os ultimados dos últimos meses. "Não basta as pessoas estarem nesta situação, ainda sofrem ameaças de demolições e das CPCJ [Comissões de Proteção de Crianças e Jovens] lhes retirar os filhos. Já não basta dormir à noite com medo de perder o único teto que têm, sem aviso, como ainda têm medo de perder aquilo que mais amam", denuncia Wilson Oliveira do movimento. Muitos não procuram ajuda com receio.
João, de 58 anos, chegou há cerca de seis meses a Portugal. Foi despejado. Vive desde o início do ano na casa construída por um amigo. "Acolheu-me, deu-me um cantinho só para poder esconder a minha cabeça, dormir, levantar e ir procurar o pão". O trabalho na construção civil tem sido esporádico, pagam "quando querem" e a demora em conseguir toda a documentação regularizada dificulta a procura de "um emprego certo".
Mas não cruza os braços, faz "pequenos biscates" até conseguir um contrato, na esperança de sair do bairro antes da chegada da sua família, que continua em São Tomé. "Estou a fazer alguns currículos para ver se consigo emprego. Tenho muita esperança", desabafa.
Sem cumprir avisos
A polícia municipal chega ao bairro minutos depois de falarmos com moradores. Nestas visitas, tem sido feito a monitorização de novas casas, que são numeradas e algumas "grafitadas""com um "X". Os moradores estão alerta. Uns espreitam, outros falam com os agentes. E a falta de explicações deixa Catarina Morais apreensiva. "Não podem ser tratadas como meras demolições. E as últimas foram feitas sem qualquer aviso prévio, o que é altamente questionável do ponto de vista legal", sublinha a advogada que apoia a Vida Justa. Ao JN, a autarquia de Loures não prestou esclarecimentos.
E em caso um despejo sem alternativa habitacional, tem de ser garantido "um acompanhamento diferente", explica a causídica. "O município tem obrigação de fazer um levantamento social e económico das famílias, identificar os problemas e encaminhá-las para alternativas". Mas dois dias depois da visita do JN ao Talude, o movimento denunciou que cinco barracas mais recentes foram demolidas.
A poucos quilómetros do Talude vivem 15 famílias também em condições precárias no bairro clandestino das Marinhas do Tejo, em Santa Iria da Azoia. Wilson Oliveira adianta que foram dadas aos moradores soluções "insuficientes e pouco realistas". "Entregavam folhas A4 com anúncios do OLX e do Idealista. Mas em 100 anúncios, só 20 atendiam o telefone. E dessas, dez desligavam assim que ouviam o sotaque. A câmara oferecia-se para pagar a primeira renda e caução, mas e depois? Como é que as pessoas iam continuar a pagar?", questiona.
Ainda assim, o ativista fala de uma "luz ao fundo do túnel" que veio a confirma-se uns dias depois: a autarquia de Loures revelou que o Governo vai realojar os moradores través do programa "Porta de Entrada".
Na outra margem, em Santa Marta de Corroios, no Seixal, mora Maria Teresa e a filha de três anos. "Eram 18 horas, em outubro, quando as máquinas e polícia começaram a partir a casa. E em novembro apareceram de novo para partir o resto", conta a moradora. Uma doença articular e óssea deixou-a inválida aos 53 anos. Vive com receio de perder o pouco que reergueu.
Também imigrante, chegou ao bairro em 2022, altura em que já tinha sido feito o recenseamento para o programa de realojamento da autarquia. A moradora conhece uma dezena de vizinhos na mesma situação na parte "velha do bairro". "Fiz vários pedidos à câmara, e não há oportunidade de ser inscrita. Perguntei várias vezes, como é que vou ficar? Sem trabalho e sem direito a casa, vou viver na rua com a menina?", pergunta.
Entrou há dois anos na lista de espera por uma habitação social. Pede que "as entidades superiores deem uma mão", diz que não têm para onde ir. Questionada sobre o plano para estes moradores, a Câmara do Seixal não respondeu.