Os trabalhadores do piso subterrâneo do maior hospital do Norte fazem um trabalho invisível mas essencial. No andar -2 funcionam os serviços técnicos e logísticos.
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A definição é deles: são "as formiguinhas" do Hospital de S. João. E a comparação encaixa, porque trabalham nas galerias subterrâneas da maior unidade hospitalar do Norte. Lembram que também estiveram - estão - na linha da frente do combate à covid-19. São os heróis invisíveis - e tantas vezes solitários - do hospital e da dura batalha contra a pandemia, com lutas travadas dois pisos abaixo do solo, nas entranhas do S. João, longe da luz do dia e do olhar de todos.
"O "zero dois" é o coração do hospital. Passa aqui o ar, oxigénio, água, luz. Qualquer coisa que aconteça aqui em baixo, hipoteca o hospital", avisa António Cardoso, que não só tem parte do coração no S. João, como é um dos muitos corações da colossal engrenagem. Tanto, que desistiu da reforma para atender à Administração, que lhe pediu que continuasse em funções. Com quase meio século de casa e 63 anos de vida, aceitou. "Visto a camisola. Gosto muito disto", atira, com os olhos azuis a sorrirem acima da máscara.
António Cardoso
Gerir mobiliário na "Ikea" do S. João
Rodeado de secretárias, armários, estantes, cadeiras, eletrodomésticos e outros equipamentos, António Cardoso está à frente da "Ikea" do S. João, como, por graça, diz quem ali acorre para requisitar material ou para deixar algum que tenha sido descartado e cujo reaproveitamento é avaliado. Assistente técnico do Serviço de Aprovisionamento, António passa "mais de metade do horário" de trabalho no armazém 6, onde o teto baixo e os móveis empilhados quase dão a sensação de estar-se num submarino.
"Pode trovejar lá fora, que não nos apercebemos de nada", sorri, confessando que não tem vagar para pensar nisso ou na solidão. "Fico tão absorvido pelo trabalho, que não tenho tempo para pensar que estou no "zero dois"". Quando a pandemia chegou, menos ainda: "Tínhamos de andar sempre à frente, a abrir os serviços; se não havia material, inventávamos", recorda, lembrando que os funcionários do -2 são "as formigas do hospital".
Paulo Pinto
" Percorremos o hospital todo"
Paulo Pinto, um dos homens do oxigénio, também não teve mãos a medir no auge da pandemia. "Houve um aumento grande do consumo. Em vez da média de 25 a 30 garrafas [de oxigénio] por dia, podíamos levar 50", estima. Com "autorização para entrar em todos os serviços", o assistente operacional passou a emergir mais vezes do -2, para entregar as "balas de oxigénio". Graceja: "se estivermos aqui [em baixo] muito tempo, temos de ir lá fora ver como está o tempo. Mas passamos muito tempo na distribuição, e o facto de irmos lá acima ajuda".
O colega, Valdemar Carvalho, dirá que "não há nada como ver a luz do dia". "Aqui, é escuro, mas a gente habitua-se", conforma-se Paulo, sob as tubagens do corredor. Partilham a mesma idade (43 anos) e um pequeno escritório onde se estremece à passagem dos carros metálicos de transporte das mercadorias. "Todos os dias percorremos o hospital todo", relatam os funcionários do Serviço de Instalação e Equipamento, a trabalhar para Farmácia porque distribuem gases medicinais.
José Cruz
Eletricista para toda a obra
Até à semana passada, José Cruz trabalhou sempre à noite, a fazer piquetes, para acorrer a qualquer avaria elétrica. Com o quarto junto ao posto de transformação que "é o coração do hospital", o eletricista fala num trabalho "solitário" e em alguns "sustos" vividos quando começou a trabalhar no -2. "A televisão ajuda a passar o tempo, porque, à noite, não há movimento algum. Não se passa nada. Além de nós, raramente passa aqui alguém. Só se ouve o carro da mortuária, de vez em quando", descreve José, que tem 57 anos e quase 40 de trabalho no S. João.
Mas já viveu algumas noites mais agitadas, com pedidos inusitados para "abrir portas ou tirar alianças na Urgência". É que, "nesse horário, só há eletricista".
José e Agostinho
"Para nós, aqui, é sempre noite"
Com poucos mais anos de vida do que o tempo de serviço de António no hospital, José Carlos Mendes também vibra com o que faz. Aos 55, mais de metade no S. João, é encarregado operacional do Aprovisionamento Logístico, com quatro armazéns a cargo. O 3, de material clínico, é o maior e "o principal". "Daqui, distribuímos para o hospital todo", diz Mendes, que trabalhou "sempre no armazém, por opção e gosto".
Tem o escritório entre as longas filas de estantes, sob a frieza branca da luz artificial, e confessa que este "é um dos problemas". "Para nós, aqui, é sempre noite. Quando vamos almoçar, quase não conseguimos abrir os olhos".
"Bom dia. É para entregar o material". Agostinho Pereira arrancara do -2 para um dos internamentos. Pelo corredor, viu a luz do sol. "O dia acaba lá fora e nem damos conta", observa o funcionário.
À superfície, na azáfama diária, poucos adivinham o que se faz no subsolo. "Às vezes, vem aqui uma enfermeira ou outra, e ficam pasmadas", relata José Carlos Mendes, que evoca 2020: "Se não fôssemos nós, aqui, o pilar, o material não chegava lá acima. No fundo, éramos as formiguinhas".
Há 20 anos no armazém de rouparia
Rosinha, como é conhecida entre os colegas, já leva 44 anos de trabalho no S. João, dos 66 que tem de vida. Começou na cozinha, onde esteve pouco mais de duas décadas. Depois, passou para o armazém de rouparia, um pequeno "bunker" nas profundezas do hospital, tal é a pouca altura até ao teto. Nada que apoquente Rosa, que anda "sempre nos serviços", a fazer entregas, o que "minimiza" o facto de trabalhar no subsolo.