Cemitério da Lapa, no Porto, é um museu das mais belas obras de arte funerária e um roteiro de crimes e de tragédias amorosas. Ou a luta de classes também para ingresso no Paraíso.
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Benzido em 1838, o cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa foi o primeiro espaço de inumação privado do Porto. Quase 200 anos depois, o que se fundou para ser a última residência da elite burguesa da cidade permanece como legado das mais belas obras da arquitetura e da escultura ligadas à arte funerária. Um génio do Romantismo e também de distinção social na hora da morte e na busca da posteridade e da glória eterna.
Em "Cemitério da Lapa", livro que está no prelo, Francisco Queiroz, historiador de arte e estudioso da expressão artística funerária, descreve dois séculos do cemitério da Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, instalado no que foi uma pedreira, ordenado pela transição de regime sanitário e apressado pelo Cerco do Porto e pelo surto de cólera na cidade.
"Na altura desta construção, as pessoas não sabiam o que era um a cemitério. A palavra existia no dicionário, mas não em conceito. Já existia o cemitério britânico, mas era fechado à cidade, era só para uma comunidade muito restrita, de cidadãos britânicos, ou de pessoas que eram cristãs mas que não eram católicas. O mundo católico do Porto não sabia o que era um cemitério, excepto aqueles poucos que, por causa das guerras civis, tiveram de se exilar e que voltaram de Paris e Londres com as novas ideias, do Iluminismo e do Romantismo", observa Francisco Queiroz.
A nova e moderna necrópole de Lapa não surgiu, contudo, apenas na obediência da moda e da estética, mas por imposição das Leis de Saúde, de Costa Cabral, nos anos 1830. "Foram medidas sanitárias, por um lado, e um processo histórico, por outro, que tem a ver com o Iluminismo e, depois com o Romantismo, de valorização da individualidade, o que implicou que o anonimato na morte fosse cada vez mais entendido como uma coisa má, sobretudo entre uma burguesia cada vez mais preponderante e com dinheiro para comprar a perpetuidade. Muitas destas obras são peças marcantes, para recordar aos outros que, além de rico, tinha bom gosto e estava na moda. Era como se uns morassem na Foz e outros em Campanhã.
Uma dessas obras foi inigualável, no requinte artístico e no valor do investimento: no luto por uma filha de seis anos, o banqueiro Joaquim Pinto Leite mandou construir uma capela toda em mármore, que ainda reluz acima de todas. "Tive a sorte de encontrar na família um caderninho em que ele anotou todas as despesas do jazigo. Custou quatro contos. Para se ter noção, equivale hoje a um bom prédio no centro do Porto".
amores, suicídios e crime
Com maior ou menor romance, o que só lhes enriquece o enredo, estas e outras histórias fazem já parte dos roteiros de necroturismo, interrompidos pela pandemia. A covid cortou as visitas guiadas, que incluíam incursões noturnas, teatralizadas e musicalizadas, mas nada impede que, até reposição da normalidade sanitária, qualquer cidadão possa visitar um comum museu de belas artes. Os portões estão abertos na hora de expediente. A entrada é livre.
Lá dentro, tudo é história, como a de um jazigo de tragédias acumuladas, de paixões assolapadas, de crimes e de acontecimentos funestos. Ali, em meia-dúzia de gavetas, em nove metros quadrados, repousam os restos mortais de Camilo Castelo Branco, também os de outros dois suicidas, que se mataram por desilusão de amor, e ainda os de um homicida em série, um médico do Porto, condenado, em 1890, por ter envenenado e assassinado um sobrinho.
No mesmo ano de 1890, a 1 de junho, Camilo pôs fim à vida, com um tiro na cabeça. O corpo do autor de "Amor de Perdição" foi selpultado na Lapa, no jazigo de família de um amigo do escritor, Freitas Fortuna, que herdara a concessão dos túmulos do pai, João António de Freitas Júnior, um próspero negociante, proprietário de um armazém de papel e de uma tipografia, na Rua das Flores.
Outro filho do comerciante, o caçula, Urbino de Freitas, o tal médico, foi condenado a oito anos de cadeia e 20 anos de exílio. Tinha cinco filhos e foi um destes rebentos, Emílio Urbano, que somou mais fatalidade a esta história. Regressado da Bélgica, onde concluíra os estudos, e de volta à casa da família, no Porto, o jovem engenheiro encheu-se de ardores por uma percetora das irmãs, uma moça descendente de fidalgos alentejanos caídos na ruína. Juras de amor recíprico e eterno. Problema: a mãe do rapaz não gostou e tratou de devolver a bela alentejana à procedência; Emílio não resistiu e suicidou-se, com um tiro na cabeça.
Corria o ano de 1902. O corpo foi sepultado no jazigo da família. Dias depois, nova tragédia: Clementina viajou para o Porto, instalou-se num hotel e suicidou-se, com... um tiro na cabeça! Ao lado corpo estava um papel com um pedido: "Tenho no vosso jazigo um lugar ao lado do nosso mártir. Não se opõe, não? Se acaso derem comigo a tempo, não me chamem à vida, ajudem-me a morrer. As nossas vidas pertenciam-se...". A família Freitas lá condescendeu e a moça foi sepultada ao lado de Emílio, identificada com duas misteriosas iniciais: CS, de Clementina Sarmento.