Sexta-feira 13. “A morte perguntou-me se eu queria ser decapitada e eu disse que sim”
Dezenas de milhares de pessoas de todo o país e do estrangeiro voltaram a invadir Montalegre para a festa das bruxas e do oculto.
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A tarde ainda ia a meio e a vila de Montalegre já estava invadida dos entusiastas da Sexta-Feira 13. “Este ano começaram a chegar mais cedo”, segredava uma autoridade, enquanto se ia cortando o acesso de automóveis ao centro. Se já é apertada todo o ano, a zona histórica mais acanhada fica na festa que ali leva dezenas de milhares de pessoas de todo o país e muitos estrangeiros.
Música nas ruas e praças, bruxas e bruxos, diabos e diabretes, mortes e figuras horrendas, zombies e lobisomens, selfies e fotografias de grupo, repetentes e estreantes, cheiro a carne assada, sandes devoradas e cerveja sorvida, enfim... de tudo um pouco, na verdade muito, se faz a romaria na capital do misticismo.
Entre a vozearia destaca-se o pregão “dois pares de cornos a cinco euros!” São os vendedores de adereços cornudos vermelhos com luzes que não se calam, que fazem pela vida e que a muitos convencem, pois que em chegando ao castelo, onde a festa atinge o êxtase perto da meia-noite, raro é aquele que, não querendo ficar à margem, ali aparece, nem que mais não seja, com o tal adereço na cabeça.
Mas há quem, muitos até, que não arribam ali com ar desprevenido, com ares de quem saiu de casa a dizer “ala, que se faz tarde”, e que, do mal o menos, sempre há quem venda um par de cornos vermelhos e a pressa fica disfarçada.
Não é o caso das quatro “bruxas” do Porto e Vila Nova de Gaia, Bete Maria, Patrícia Prado, Jucy Rios e Maria da Conceição Teixeira, todas de escuro vestido, rendas e roupagem a condizer com o chapéu de feiticeira e das vassouras que trazem na mão. Não foram nelas montadas, pois de autocarro viajaram desde as cidades. Elas e mais 31. Em grupo a festa é à mesma de arromba, mas dobrada.
Bete é brasileira. E “bruxa mor”. No país de origem “não há disto, pelo menos desta forma, e aqui é maravilhoso”. Patrícia, também do país do Samba, gosta, sobretudo, “da cultura e da brincadeira” da Sexta-13. “É interessante conhecer a diversidade que existe. Enriquece-me”, confessa, enquanto Jucy destaca a “oportunidade de conhecer mais culturas e mais pessoas”.
Maria da Conceição Teixeira é a única portuguesa das quatro, também é a primeira vez na festa do misticismo de Montalegre. Transporta a “magia”, que “tanto pode ser da maldade como do amor”. Ela prefere “transmitir a do amor”. Entende que “a iniciativa é “uma boa forma de dar a conhecer o concelho e dinamizar a região, com a boa carne que tem à cabeça de uma lista de outros produtos”.
Em grupo também chegaram 45 de Fafe. São todos motards, uns poucos dos 300 e tal que integram o clube. É fim da tarde, junto à carrinha fúnebre emprestada, com um “perna” entalado num dos vidros escuros, monta-se ali o “balcão” das maquilhagens e, não tarda, todos ficam com a cara branca, olheiras pretas, boca cosida... Enfim, uma espécie de zombies medonhos vestidos com capas negras e grandes crucifixos ao peito.
“A ideia é sempre a diversão”, concede Fernanda Mendes, coordenadora do grupo fafense na Sexta-13. Na carrinha funerária há merenda para a noite toda. Elsa Teixeira diz que “o grupo é fantástico” e torna a presença em Montalegre “indescritível”. Rolando Oliveira é a primeira vez que vai e mostra-se “entusiasmado” com a festa “especial” em que participa.
Na Praça do Município deambulam por lá criaturas de perna longa, uma delas a morte, a cuja gadanha muitos se entregam. Estranho mórbido gosto este de lhe dizerem “decapita-me”. Quase todos querem ser decapitados em frente às câmaras dos telemóveis. Não só de quem ficou encarregado de gravar a imagem para a posteridade, como de muitos dos que estão à volta e acham piada à gadanha afiada a funcionar.
“A morte perguntou-me se eu queria ser decapitada e eu disse que sim, foi engraçado”, revela Eva Pires, jovem montalegrense de 19 anos que se diverte com a irmã Cassandra e a prima Belinda num mar de gente. “É muito bom ver a vila assim animada”, já que nos outros dias “há muito poucas pessoas”. Sónia Salgado, de Guimarães, preferiu que a sua presença em Montalegre ficasse registada numa fotografia com uns lobisomens, por serem “figuras diferentes de todos as outras”. Foi a diversidade de monstruosidades que a atraiu pela primeira vez à fria vila barrosã. A ela, ao marido, à filha e a uma amiga. A pequenina não está pelos ajustes para posar com os lobisomens. “Tenho um pouco de medo”, admite, sorrindo.
As tasquinhas e rulotes continuam a bombar, sem mãos a medir, há que jantar e está tudo lotado no concelho. Rosa Correia marcou alojamento em Penedones, aldeia de Montalegre, com “um ano e meio de antecedência”. Queriam sair de Manique de Baixo, em Cascais, onde vive com a família, e ter dormida certa até domingo.
“Tinha mesmo de vir. Não só pela festa, como pelo facto de eu e a minha filha termos nascido numa Sexta-Feira 13. Como bruxinhas que somos tínhamos de vir fazer parte da festa das outras bruxas”, sorri Rosa. “Acho isto muito giro e é uma experiência única, difícil de explicar”, confessa a filha Inês, 19 anos, corroborada pelo irmão Tiago, de 24.
O marido de Rosa, Luís Correia, lembra que “há uns quatro anos” que tinham decidido que haviam de ir a Montalegre numa Sexta-Feira 13. E este ano lá foram os quatro e mais um casal de primos, Maria Ricardo e o marido. “Queríamos perceber a vivência desta festa, um ambiente muito caraterístico com a envolvência de todas as pessoas”, destacando a queimada (bebida com aguardente) como uma forma de “manter as pessoas quentes” em terra fria.
São nove da noite e continua a chegar gente. Onde irá caber? Já não se cabe nas principais ruas da vila, menos ainda na área do castelo e continuam a chegar. Filas de carros às 10 da noite para entrar na vila, já toda entupida. Jeitinho daqui, jeitinho dali, há de dar para todos.
Não admira que um grupo de investigadores da Universidade do Porto ande em Montalegre a estudar o fenómeno da Sexta-13. A presidente da Câmara, Fátima Fernandes, diz que vão “perceber como é que um evento que começou com uma escala muito pequena, apelando à identidade e à história do concelho, aumentou até atingir a dimensão atual em todas as vertentes”.
O estudo também deverá incidir na componente económica, ou seja, no retorno que tamanha celebração traz para um concelho que, tal como muitos outros do Interior, vive aflito com o despovoamento galopante.
A tenda arruma-se por agora, mas volta a ser montada dentro de três meses. Em dezembro volta a haver Sexta-13 em Montalegre.