<p>"Sou moleiro desde a barriga da minha mãe", começa por dizer Fernando Mourão. Passados 52 anos, o motorista de autocarros ainda se detém, fascinado, "a ver a pedra trabalhar". </p>
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Na antiga casa da família, em Casal do Espírito Santo, Sebal, no concelho de Condeixa-a-Nova, perduram três moinhos. Dois são de água, o outro, eléctrico, é usado apenas quando o Verão seca os canais. Até porque a qualidade do produto é inferior. "Se me derem duas amostras de farinha, uma do moinho de água e outra do moinho eléctrico, com os olhos fechados eu sei qual é qual".
Fernando Mourão conta tudo isto, entusiasmado, autêntico guia no sítio onde cresceu e continua a voltar, todos os dias, para moer o milho e o trigo. "O meu quarto era aqui, ao lado do moinho. Quando estava desligado, não conseguia dormir bem", nota.
"Ainda gostava de, quando me reformasse, dormir aqui umas sestas, ao som da pedra", diz Fernando, sorridente. O pai fazia isso. Aliás, a moagem parece colada àquela família, onde agora só ele sobra, com uma ajuda ténue da mulher e das filhas, com 16 e 18 anos. O pai e a mãe conheceram-se a vender farinha. Cada um tinha, atrás de si, uma família de moleiros. A mãe, então, era verdadeiramente dedicada ao ofício, como recorda Fernando: "Ela adorava isto. Uma vez, esteve em coma, no hospital, e quando acordou só falava em farinha. Chegou a dormir a sesta em casa de fregueses, no Verão".
Entre os clientes - muitos herdados dos pais, sobretudo em Carapinheira do Campo, no concelho vizinho de Montemor-o-Velho -, estão padeiros e particulares. Alguns entregam-lhe cereais para ele moer, outros preferem adquirir o produto final. A farinha é usada, essencialmente, para fazer broa e papas. "Desde que o pão começou a ficar mais caro, as pessoas passaram a usar mais o forno para cozer a broa", observa.
A moagem é apenas um "part-time" a que Fernando Mourão se dedica por gozo, já que o ofício "rende poucochinho". É ele quem trata de tudo sozinho. Faz a distribuição dos sacos de farinha porta a porta, como antigamente. Mas a carroça em que chegou a fazer as entregas, com a mãe, deu lugar a uma carrinha de caixa aberta. Filho único, ajudou em casa desde que tem lembrança de existir.
Fernando Mourão lamenta que a actividade esteja a desaparecer - logo ele, que viu moinhos por ali às dezenas, e moleiros a fazer fila com as suas carroças carregadas de sacos de farinha -, mas espera dar-lhe continuidade até ao fim, como fizeram os pais.
A dureza física é uma explicação para este esmorecer - não apenas o fraco rendimento. É preciso carregar sacos às costas, fazer entregas, tirar a mó - "pesadíssima" -, de vez em quando, para a picar, de maneira a que cumpra bem a sua missão, e voltar a colocá-la. "Para entregar a farinha também apanho grandes molhas", acrescenta, bem disposto.
A vida, dividida entre as mós e os autocarros, está bem organizada: "Nunca faltei uma hora ao meu serviço para fazer farinha!". Fernando Mourão é motorista, nos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra (SMTUC), há quase 20 anos. "Gosto de tudo o que envolve lidar com pessoas!", justifica. E quanto aos malabarismos constantes que tem de fazer para cumprir as obrigações de um lado e do outro? Simples: "É giro, é divertido!".