Americanos, canadianos, neozelandeses, indonésios e iranianos trabalham nos tapetes de flores que cobrem as ruas de Vila do Conde.
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São duas dezenas à mesa e já entraram no “espírito bileiro”: entre conversas animadas e muitas gargalhadas, desfolham como “gente grande”. Só as “cookies” em cima da mesa os “denunciam”. Há americanos, canadianos, neozelandeses, indonésios e iranianos. Uns vieram há anos, outros contam apenas meses em Vila do Conde. Querem participar, sentir-se parte da comunidade, “treinar” o português e, acima de tudo, devolver à cidade o tanto que lhes deu. As mãos estrangeiras são, cada vez mais, ajuda preciosa para dar corpo a uma tradição com mais de 500 anos. Esta madrugada, as toneladas de flores desfolhadas pétala a pétala ao longo de três semanas, transformam-se em três quilómetros de tapetes, que cobrem as ruas do centro histórico de Vila do Conde para receber a procissão do Corpo de Deus.
“Uma festa religiosa, um trabalho artístico mágico ou uma celebração secular da história local e da tradição? Não interessa o significado que tem para ti, é uma oportunidade de comunidade muito especial”, atira, sorrindo, Betsy Blondin, olhando as pétalas que tem na mão.
A escritora e jornalista americana, agora reformada, mudou-se há seis anos com o marido para Portugal. Viveu no Algarve e em Mindelo. Há três anos, assentou arraiais no centro de Vila do Conde, rendida à simpatia das pessoas e à beleza da cidade. Em 2022 (os tapetes de 2021 foram adiados por falta de flores) já tinha vindo ajudar a desfolhar flores para os tapetes. Este ano voltou.
Pedro Rei Lima é apontado como o “culpado” por haver, agora, tantos estrangeiros a ajudar. Há cinco anos, conheceu um casal americano e começou a organizar uns encontros com os estrangeiros que viviam na cidade. Eles trocavam informações e contactos, Pedro ajudava no que podia. Mostrava-lhes o concelho, contava a história e as tradições.
“São cada vez mais”
Hoje continuam a reunir-se pelo menos uma vez por semana e são “cada vez mais”, quase todos reformados, todos orgulhosamente a aprender português, muitos a ajudar em projetos voluntários locais e até a zelar por capelas. “Querem sempre muito participar na vida da cidade”, explica o vilacondense. Por estes dias, a velhinha tradição dos tapetes de flores não foi exceção. “Como não temos uma rua, ajudamos um bocadinho em todas”, continua a contar.
Entre as pétalas desfolhadas, quem vem de fora “bebe”, atento, cada explicação sobre aquele saber-fazer passado de geração em geração.
Nuno Alvão agradece a ajuda. Faz parte da comissão de moradores responsável pelo tapete de S. Bento. A rua é a mais comprida das 13. São 160 metros de tapete, 80 mil flores, 260 m2 de cedro. No último mês, “assaltaram-se” os campos baldios em busca de flores – “que são, agora, cada vez menos” –, idealizou-se o desenho, deram-se instruções para a forma, rascunharam-se os “remates”. A câmara ajuda com flores e verdes, faz as formas nas oficinas municipais, cede locais para desfolhar.
Depois, são três semanas de muito trabalho. Só em S. Bento são cerca de uma centena a desfolhar: os mais velhos durante o dia, os jovens mais à noite, num movimento que tem vindo a aumentar. As flores são, depois, armazenadas até ao “grande dia”. Ontem, a partir das 22.30, começou a obra. Seguiu-se uma noite inteira “de rabo para o ar”. E porque o trabalho é hercúleo, a tradição só se realiza de quatro em quatro anos.
Tapete para o Papa deu novo alento
As primeiras referências às ruas de Vila do Conde enfeitadas com flores datam de 1466. Os tapetes com desenhos, feitos pelos moradores, terão começado em 1903. São inspirados nas rendas de bilros, com figuras geométricas que se repetem e, nos remates, monumentos da terra ou temas bíblicos. Os segredos do trabalho passam de geração em geração. Em 2023, Vila do Conde fez um tapete nas Jornadas Mundiais da Juventude. Desde então, diz Nuno Alvão, há cada vez mais jovens a participar.