Cantar ao desafio passa de geração em geração e o Alto Minho é berço da fina flor de artistas que alegram qualquer festa.
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Alegria, humor, pouca vergonha e muita perspicácia, sentido de oportunidade e alguma voz para cantar de improviso, podem fazer de um homem ou de uma mulher um exímio cantador ao desafio. Se se juntar a estridência de uma ou mais concertinas, é festa garantida e acontece em qualquer lugar. A arte da desgarrada tem atravessado gerações, com especial fulgor no Alto Minho. Antigos tocadores e cantadores vão desaparecendo e deixando o legado aos novos, que não só não deixam morrer os cantares ao desafio ao som da concertina como cada vez lhes dão mais e mais fôlego.
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Augusto Canário, referência nesta arte, medeia duas gerações de artistas e tem sido um dos seus maiores impulsionadores. Acredita que possa ser classificada Património Imaterial da Humanidade.
"Atrás do fado, do cante alentejano e de outras tradições musicais, acaba por despertar em nós um gosto que este cantar também seja considerado património. E pode ser, porque é antigo e tem um movimento nacional de amizades e interesses culturais", defende, considerando: "Podíamos centrar-nos no Minho, que tínhamos força para isso".
Alguns dos nomes maiores da região já morreram: Vilarinho de Covas (tocador) e Zé Cachadinha (tocador e cantador ao desafio). Delfim Amorim, 80 anos, é ainda uma das lendas vivas que inspiram muitos a seguir-lhes as pisadas. Armando Marinho, conhecido por "Marinho da Barca", sempre foi o seu parceiro. Nem um nem outro canta ou toca. Contudo, a "Tasca do Delfim", estabelecimento do primeiro, no coração de vila de Arcos de Valdevez, continua a ser pouso de amantes do tocar e cantar ao despique. "O Quim Barreiros vinha aqui aprender a tocar", diz o antigo tocador.
De pai para filho
A saúde de Delfim já não lhe permite folguedo, mas à mulher, Maria Amorim, de 85 anos, e ao filho Delfim Júnior, 47, corre-lhes no sangue o gosto pelas cantorias. "Não segui os cantares ao desafio, mas tenho uma banda e estou dentro do assunto. Toco concertina há muitos anos", afirma Delfim Júnior, evidenciando o dom do pai. "Há aí gente nova a cantar e a tocar muito bem. A concertina está na moda. Está aí com muita força", afirma. Carminha dos Arcos, filha de Delfim, também herdou do pai o entusiasmo por uma boa desgarrada. Atualmente, faz parceria com Carlos Rodrigues, que canta e toca, não só ao desafio, mas de quase tudo.
Augusto Canário, 60 anos, é agregador das novas e velhas gerações. Para o JN reuniu, no seu espaço, que é quase um museu, cinco das figuras mais proeminentes do cantar e do tocar concertina. Cândido Miranda, 64 anos (das Neves, Viana do Castelo), seu parceiro da velha guarda, e dos novos: Pedro Cachadinha, 30 anos (Ponte de Lima), sobrinho e sucessor de duas gerações de cantadores e tocadores dos Cachadinha (o avô Joaquim e o tio José), Cristiana Sá, 25 anos (Ponte da Barca), e Daniel Alves, 20 anos (Ponte de Lima).
Cândido Miranda é dos mais velhos no ativo. "Há muita gente nova a cantar e a cantar muito bem. A dar vida e dignidade aos cantares ao desafio. Modéstia à parte, eu e o Augusto Canário temos uma grande responsabilidade em que os cantares voltassem para cima dos palcos", diz o cantador, lembrando tempos em que os cantares "eram proibidos de ir para as festas, eram de tasca e de terreiro".
Dos novos, destaca Pi e Salgueiro, dos Sons do Minho, e Cristiana. "Os cantares ao desafio nunca vão acabar e creio que estão num pendor de subida e não de descida", afirma.
Desgarrada aos oito anos
"Comecei a cantar à desgarrada aos oito anos, nas festas e romarias de Ponte da Barca", conta Cristiana Sá, que fez formação em música clássica, mas é hoje um dos nomes femininos mais proeminentes do cantar de improviso ao som da concertina no Alto Minho. Fez disso profissão. Diz que "há mais homens do que mulheres a cantar ao desafio", mas que "há uma nova geração que se dedicou aos cantares e à busca tradicional das raízes de cada terra".
Daniel também começou nas festas e arraiais. "Hoje em dia, sinto-me muito feliz por pertencer à nova geração e por dar continuidade a isto", diz, indicando como inspiradores "Delfim dos Arcos, Marinho de Ponte da Barca e Cachadinha de Ponte de Lima".
Canário, mais velho 40 anos que o jovem cantador, conta que se apaixonou aos 20 pela desgarrada, ao ouvir Delfim dos Arcos, acompanhado pelo Marinho da Barca, às escondidas por trás de uma igreja. Em 1983, Augusto conheceu Cândido e formou uma dupla, que diz ser hoje "a mais antiga e duradoura do país". No início da década de 90, foi precursor das escolas de concertina e criou os encontros internacionais de tocadores e cantadores do Inatel em Viana do Castelo. "Passaram 25 ou 30 anos e nunca houve tantos tocadores de concertina e cantadores ao desafio como agora", diz Canário.
Jorge Salgueiro de 44 anos, e João Cruz, 32, este último dá-se pelo nome de Pi da Areosa, dizem que até em casamentos cantam a pedido. "Os cantares ao desafio têm a facilidade de animar uma festa. Basta uma concertina e uma ou duas gargantas", destaca Jorge.
Pi, que se cruzou com Salgueiro numa Festa d'Agonia e acabou por formar a banda Sons do Minho e, à parte, uma dupla de sucesso no cantar de improviso, refere que a região minhota "é a fonte mais rica dos cantares ao desafio".
Já nasci com a fama feita e o meu filho vai continuar
Pedro Cachadinha é, depois da morte do carismático José Cachadinha, em 2019, o sucessor da linhagem de tocadores e cantadores daquela família de Ponte de Lima. "Já nasci com fama feita. Quem a fez foi o meu avô [Joaquim] e o meu tio Zé. É só continuar e quando ficar velhinho o meu filho que continue, que é para os Cachadinha não acabarem", diz, comentando: "Isto vai passando, porque tenho um filho com oito anos que também já toca. Quando uma pessoa nasce, isto já vem no sangue".