Monjas em oração, práticas de medicina conventual, artes monásticas e o fervilhar de nobres, burgueses e camponeses nas ruas da vila compõem o cenário da recriação histórica que se inicia esta sexta-feira e decorre até 20 de julho e transforma o Mosteiro de Santa Maria de Arouca num palco vivo da sua história.
Corpo do artigo
A iniciativa, que este ano reúne cerca de 260 atores amadores e figurantes locais, oferece ao público uma experiência única no quotidiano de um mosteiro emblemático, mostrando a vivência do século XVIII.
A recriação histórica envolve elementos de associações locais e voluntários que, ao longo de três dias, dão vida a episódios da história arouquense. Entre os momentos destacados estão o acolhimento de uma noviça, o trágico fuzilamento de Frei Simão de Vasconcelos, as lutas liberais e até o incêndio que atingiu o mosteiro. Cada quadro é encenado com atenção ao detalhe e respeito pelo rigor histórico.
A direção artística do evento está a cargo de Vânia Silva, que sublinha o valor humano do projeto: “Trabalhamos com algumas pessoas da comunidade que nunca fizeram teatro, e é maravilhoso ver o desenvolvimento de cada um ao longo destes meses”. Os ensaios começaram em abril e permitiram um crescimento artístico notável entre os participantes.
“São atores amadores que conseguem dar tanto como atores profissionais”, reforça Vânia Silva, acrescentando: "Esta é uma experiência enriquecedora que culmina em três dias de intensidade emocional e cultural”.
“Trata-se de uma recriação o mais fidedigna possível, sem prescindir da verdade histórica”, destaca-se, por sua vez, o coordenador científico, Afonso Veiga. Autor de várias obras sobre Arouca, considera a recriação uma verdadeira “escola de cultura” para quem reside na região e para os visitantes. “Revivem-se alguns dos factos mais relevantes da história de Arouca, com rigor”, reitera Afonso Veiga, apaixonado pela temática: “Comecei a interessar-me pelo Mosteiro e a correr os arquivos disponíveis. Torna-se quase um vício”.
Entre os participantes, há quem já tenha experiência acumulada. Miguel Brandão, figurante há uma década e membro do Grupo Cultural e Recreativo de Rossas, afirma que, apesar do trabalho exigente, tudo é feito “com muito gosto e interajuda”. "É uma experiência única, uma oportunidade de aprendizagem e um orgulho poder representar histórias que fazem parte da identidade arouquense”, observa.
A presidente da Câmara de Arouca, Margarida Belém, salienta a importância cultural e identitária da recriação: “É um evento que nos distingue e muito nos orgulha. Não só porque recria momentos marcantes da nossa história profundamente ligada ao Mosteiro, mas também porque é protagonizado por arouquenses, que dão corpo e voz às personagens que outrora marcaram esta vila.”
A autarca acrescenta que é uma forma de dinamizar a economia local e promover o turismo cultural: “Esperamos, como em anos anteriores, uma grande afluência de visitantes. Este é um evento que promove o nosso património, mas também os nossos produtos, o nosso comércio e o nosso saber-fazer.”
“É um acontecimento que traz muita gente a Arouca e pudemos mostrar o trabalho das nossas associações”, sublinha Miguel Brandão.
Intitulada “Arouca – História de um Mosteiro”, a recriação é organizada pelo Município e conta com o apoio do Património Cultural (instituto público), da Real Irmandade da Rainha Santa Mafalda, da Paróquia de Arouca, da MS Collection e da Torre do Tombo, entre muitos outros parceiros locais.
A recriação começa amanhã, às 20.30, com a abertura do Mercado Oitocentista e Tabernas, no Campo do Mosteiro e nas ruas da vila. No sábado e no domingo, o programa inicia-se às 10 da manhã. No sábado, a última iniciativa (a recriação de um grande fogo que atingiu o mosteiro) começa às 23.40; no domingo, o encerramento da recriação está marcado para as 19.45.
A entrada é livre e todo o programa está disponível no site da Câmara de Arouca.
EPISÓDIOS
Incêndio no Mosteiro (sábado à noite)
São conhecidos os relatos que dão conta da ocorrência de um incêndio de grandes proporções que deflagrou, a 23 de fevereiro de 1725, no Mosteiro de Arouca. A situação gerou situações de pânico. Monjas, senhoras e criadas que ali residiam correram descoordenadamente à procura de água e de quaisquer outros meios para apagarem as chamas. As mais idosas terão sido retiradas para o exterior, as restantes saíram em debandada. O alvoroço, os gritos e os pedidos de socorro vindos do interior despertaram a atenção de quem morava na envolvente do mosteiro, que ajudou a combater as chamas. As monjas, em aflição, clamaram fervorosamente por Dona Mafalda para que esta viesse em socorro do Mosteiro e das irmãs. Tornou-se crença que foi a intervenção de Dona Mafalda a aplacar as labaredas, cessando o perigo.
Entrega das Varas do Poder Municipal
Até à Revolução Liberal de 1820, mas com efeitos mais notórios a partir de 1834, data da extinção do mosteiro, era a abadessa, eleita pelas monjas de três em três anos, que tinha a autoridade dentro do Couto de Arouca, no domínio económico, religioso, político e administrativo. No início de cada triénio, cabia-lhe, coadjuvada pelo seu grupo de conselheiras, aprovar os nomes de três pessoas para, no exterior do mosteiro, exercerem as funções municipais, manter a segurança, resolver assuntos correntes de justiça, etc. A cerimónia de entrega das varas do poder consistia na entrega dos poderes, pela mão da referida abadessa, ao juiz ordinário, ao vereador mais velho e ao vereador mais novo, na casa da grade, virada ao terreiro de Santa Mafalda, a poente. A partir desta altura cessavam as funções dos membros da câmara anterior.
Os dias de benzimento e de juramento de votos perpétuos
Após um ano de noviciado sob orientação da mestra de noviças, as jovens candidatas ao hábito branco de Cister, com idades entre 16 e 25 anos, faziam os votos perpétuos de pobreza, obediência e castidade numa solene cerimónia religiosa. O ritual, conhecido como dia da profissão ou benzimento, ocorria geralmente aos domingos ou em dias santos da Congregação, sendo presidido pelo padre confessor em nome do abade-geral de Alcobaça. A celebração, inteiramente em latim, incluía missa solene com cânticos, ladainhas, salmos e acompanhamento de órgão. A igreja, ricamente iluminada por velas e círios, criava um ambiente de grande esplendor. O momento era vivido com intensidade pela comunidade e pelas famílias, que assistiam à consagração das novas “Esposas de Cristo” com profunda emoção.
Quotidiano no interior do Mosteiro
Após professarem os votos, as religiosas passavam a viver no mosteiro até ao fim da vida, seguindo uma rotina rigorosa centrada na oração, especialmente na Liturgia das Horas, iniciada com as matinas à meia-noite e encerrada com as Completas ao anoitecer. Entre as orações, dedicavam-se à administração do mosteiro, a trabalhos manuais como renda e bordado, à leitura, à música e ao canto, evitando a ociosidade. A comunidade era liderada pela abadessa, que tomava decisões no Capítulo. Celebravam os santos da Ordem de Cister e devoções próprias do mosteiro, e nas celas pediam perdão e proteção divina antes do descanso. Acreditavam que a vida de oração, jejum e sacrifício as aproximava de Deus.