Os dias mais duros do Vale do Ave levados à cena por uma centena de participantes do grupo Outra Voz.
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Os portões da Escola Secundária Francisco de Holanda, em Guimarães, abriram-se, anteontem, por volta das 15 horas. Não havia aulas, mas o pavilhão desportivo acolhia mais um ensaio geral do grupo Outra Voz, que, no próximo dia 31, vai juntar cerca de uma centena de pessoas no palco do Centro Cultural Vila Flor para musicar um filme do qual também são protagonistas. Aquilo que foram as suas partilhas e sentires nos meses mais negros da pandemia serviu de inspiração para "Os que nele habitam", uma história ficcionada que tem o Vale do Ave como lugar comum.
"Sou uma lambona de abraços", atira Celeste Pinto, enquanto distribuiu afetos a quem chega ao pavilhão. "Isto é uma festa quando há ensaios gerais. Está tudo feliz e excitado", acrescenta Esperança Silva, não recusando os beijos e cumprimentos mais apertados. Pureza Silva, "a fotógrafa do grupo", vai captando tudo "às escondidas", enquanto também põe a conversa em dia. "Isto é uma família, tenho mesmo necessidade de estar aqui", confessa.
Mais ou menos afinados, mais ou menos coordenados, todos vão subir ao palco para uma performance que junta voz e movimento. Na associação Outra Voz, projeto que resistiu após a Capital Europeia da Cultura em Guimarães (ler texto ao lado), a comunidade é chamada a fazer parte, independentemente da condição física, idade ou habilidade artística. "É impossível largar isto. Eu acho que não canto muito bem, mas dá-me prazer. Cada espetáculo é um desafio indescritível", confidencia Helena Sousa, diretora da Companhia de Bailado de Guimarães, que serve de sede ao projeto.
Meses de convívio perdido
A pandemia retirou-lhes longos meses de convívio. A alegria que, agora, transmitem com sorrisos rasgados, foi-lhes roubada temporariamente. "A energia geral era muito pesada, as pessoas precisavam de falar. Bastava perguntar: "Então, tudo bem?" e começavam 30 minutos de desabafo. Estavam com ânsia pelo fim [da pandemia]", conta Rui Souza, que, em maio do ano passado, com Pedro Bastos, foi bater à porta de cada um dos participantes da Outra Voz para ouvir o que estavam a sentir.
Foram mais de 20 horas de gravação que a realizadora Cláudia Ribeiro vai transformar num documentário, a estrear até ao final do ano. Para Rui Souza, diretor artístico, e Pedro Bastos, realizador do filme musicado "Os que nele habitam", aqueles contactos serviram de inspiração, mas o ponto de partida é, sobretudo, o Vale do Ave como lugar comum a todos os que vivenciaram estes tempos.
"Vamos trazer a voz à rua e uma comunhão social. Depois, há um paralelismo muito forte entre a pandemia e o Vale do Ave. A desindustrialização e os despedimentos provocaram uma ausência da função na vida. O processo pandémico foi outra camada, como se não pudessem fazer nada, outra vez. É um ciclo constante entre procura de pão, trabalhar para o pão", reflete Pedro Bastos.
Testemunhos
Pureza Silva, 69 anos, é das primeiras a chegar ao ensaio geral da Outra Voz. Partilha afetos com as amigas, antes de pegar no telemóvel para começar a sessão fotográfica do dia. Gosta de captar vários momentos espontâneos destes encontros e depois partilhar na página das redes sociais do projeto, onde chegou em 2012. Na altura, foi desafiada por Helena Sousa, da Academia de Bailado de Guimarães, onde a neta praticava ballet.
Pureza Silva, natural da vila de Ponte, recorda-se que, à data, ainda resistiu a aceitar o convite, por causa dos horários, mas assim que deu o sim e participou nos primeiros ensaios "[ficou] logo entusiasmada". "Depois, pensei: porque é que não vim mais cedo?", conta, falando de "uma energia positiva" que permite "envelhecer com qualidade".
"Não é só treinar a voz, também é o movimento do corpo. E preparamos canções diferentes para cada espetáculo", descreve a sexagenária, que tem gosto pelo canto e também integra grupos corais.
A pandemia retirou-lhe os ensaios presenciais com os amigos, mas na Outra Voz mantiveram-se os contactos, para não se perder a união. "Falávamos uns com os outros por telefone. Foi muito importante esta ligação", conclui a "fotógrafa" amadora.
Quando Teresa Marques chegou à Outra Voz, em 2012, já lidava de perto com o mundo artístico. Em Briteiros, onde vive, fundou um grupo de teatro há duas décadas e também um de música tradicional. Diz que não é a representar que se sente melhor, mas sim a cantar, o seu "calmante" para os dias mais stressantes.
Aos 60 anos, Teresa vive sozinha e, apesar de uma vida ativa, entre o trabalho na Câmara de Guimarães e os projetos culturais, viu na Outra Voz "um escape para passar mais um pouco de tempo e fazer coisas diferentes". Quando lhe foi apresentada a ideia, na Casa do Povo de Briteiros, fascinou-a "o convívio intergeracional".
Também a ela a pandemia a privou, no último ano, desses encontros, mas garante que conseguiu dar a volta à solidão com o trabalho. "Tive sempre uma vida normal. Podia estar em teletrabalho, mas preferia deslocar-me. Como vivo sozinha, enclausurada de dia e de noite, não seria nada bom", confessa, numa pausa do ensaio para o próximo espetáculo.
Na primeira hora, quando se treinavam as performances corporais, preferiu estar sentada. À primeira vista, a limitação física, causada por uma poliomielite aos nove meses, poderiam parecer justificação. Mas nega. "Estou só preguiçosa. Eu faço tudo, sem qualquer impedimento", regozija-se.
Outra voz nasceu para ser um lugar de encontro
Através da expressão vocal, projeto combate solidão e isolamento na comunidade.
A pensar na programação da Capital Europeia da Cultura de Guimarães, em 2012, a Outra Voz surgiu como grupo aberto à comunidade dedicado à expressão vocal a partir da música de tradição. Foi o único projeto artístico que resistiu dessa altura e, em 2013, se transformou em associação cultural que conta com ensaios regulares em seis freguesias do concelho (Briteiros, Lordelo, Nespereira, Pevidém, S. Torcato e centro da cidade, na Academia de Bailado de Guimarães).
"O essencial deste projeto é ser um local de encontro. Mas somos ambiciosos e arrojados nas linguagens estéticas que gostamos de aplicar nas nossas apresentações. Embora possam parecer abstratas, são linguagens com as quais as pessoas se relacionam muito e com exercícios que partem das suas memórias", descreve Carlos Correia, presidente da associação, que tem tido nas gerações mais velhas a maior aceitação.
Sempre em contacto
O responsável acredita que, além do projeto "promover o reencontro", combatendo fenómenos como o isolamento social e a solidão, os participantes sentem ligação ao produto artístico que desenvolvem. "Vamos beber muito à criação espontânea de cantigas que existiam e se perderam", elucida Carlos Correia, confessando que a pandemia deixou o grupo "com o coração apertadinho" e, além das entrevistas que Rui Souza e Pedro Bastos fizeram junto das pessoas e que vão resultar num documentário e no filme "Os que nele habitam", a direção conseguiu pôr os participantes em contacto através de telefonemas e de troca de cartas. "O espírito de união manteve-se", regozija-se o dirigente, adiantando que o próximo passo da Outra Voz será chegar aos mais pequenos.
A associação, que atualmente conta com cerca de 100 elementos, está a desenvolver um projeto para as escolas, que tem o objetivo de pôr as crianças a utilizar a voz como um jogo. Além de performances e encontros entre pares, esperam juntar esta geração aos adultos e envolver os pais.