Há rosas brancas no ar e homens e mulheres de vidas duras em lágrimas; estão vestidos de negro, têm a revolta contida e emoções prestes a transbordar. Mas não quebram por um instante, muito menos na promessa feita, de um protesto pacífico.
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Nem quando Nossa Senhora de Fátima lhes vira as costas e entra na igreja sem direito à tradicional despedida de lenços brancos nas mãos, num gesto que a população de Lavra diz ser inédito e que no adro faz soar um masculino e tímido “vergonha!”, sem mais ecos, por entre o mar de gente enlutada e de flores alvas ao alto, em sinal de paz. A população não arreda pé sem se despedir da santa, e sem tumultos entra na igreja de rosas na mão para deixá-las aos pés da imagem e cantar-lhe o adeus.
A noite de sexta-feira está quase a entrar na madrugada de sábado quando finda a procissão de velas, feita sem sobressaltos e com um imenso manto negro pelas ruas de Lavra, vila no extremo norte de Matosinhos onde a abastança de quem mora à beira da praia convive com a simplicidade dos que trabalham no mar e na terra e que, por estes dias, vive dividida pela polémica entre população e padre, irredutível na decisão de não permitir que os santos da igreja, como a Nossa Senhora de Fátima, sigam na procissão em honra da santa, que em agosto vai até à praia para benzer os barcos dos pescadores de Angeiras.
No cortejo das velas, o andor de Fátima – imagem recentemente comprada pela paróquia, diferente na forma e tamanho da que está na igreja – vai à frente, em ombros, e o pároco segue numa carrinha, sempre atrás dos fiéis de luto pelo fim da tradição das festas em honra da santa que “protege os homens no mar”. “Rainha da paz”, reza António Augusto Sousa, amplificado por colunas de som. “Esperemos que isto não seja em vão, e que vejamos resultados”, arrisca uma devota, de vela numa mão e rosa branca na outra. Nuno Araújo, que representa os pescadores, estima “perto de 500 pessoas” em protesto na procissão.
“Sou filha, mulher, nora, cunhada e irmã de pescadores, e é uma tristeza muito grande ver que a nossa imagem não vai até à praia. Desde que me conheço que a vejo ir: quando a sirene toca e a Senhora pisa na areia, choro até que ela sai da praia”, conta, com a voz embargada, Manuela Pereira, que crê que “o padre está a discriminar os pescadores” e que a decisão que tomou “é uma teimosia”. Raquel Miranda também se emociona: “A Nossa Senhora verdadeira que me passe à porta de casa, como todos os anos, e que vá benzer os barcos, porque os pescadores passam muito no mar”.
Ouve-se sempre a “avé Maria”, pelas ruas de Lavra, e ninguém ousa erguer a voz. Apenas as rosas brancas, quando a imagem recolhe à igreja. Mas, neste ano, e para espanto de todos, Fátima não se vira para a multidão, e sai de cena de costas voltadas para todos. Solta-se logo um burburinho, que os pescadores tentam conter. Incrédulo, Nuno Araújo não compreende a decisão, sobre a qual o JN não obteve reação do pároco. “O adeus à Senhora é sempre cá fora, e a Senhora é virada para o povo”, explica. É ponto assente: ninguém sai dali sem se despedir da Nossa Senhora, mas os homens do mar pedem a calma de todos. E todos entram no templo, com respeito e a emoção no olhar.
É num arrepio que se vê gente rija de lágrimas a correr pelo rosto a cantar “ó Fátima, adeus”, de olhos postos na imagem que adoram há oito décadas e onde deixam as rosas. Exclamam um emocionado “é nossa!”, e os aplausos ecoam no templo. Por um segundo, Manuela Pereira não se contém: “Estão contra os pescadores”. Emocionam-se novos e velhos, mulheres e homens. Deixam a igreja com os olhos em água: ninguém entende por que se mexe com a fé de quem passa tormentas no mar e dos que se angustiam em terra, sempre com o coração apertado até que os barcos dos filhos, maridos e irmãos atraquem na praia. Pescador, Carlos Silva não segura as lágrimas e volta-se para Manuela: “Ela vai à praia”. Abraçam-se os dois longamente, diante da igreja, e a mulher, que tem a família toda no mar, responde-lhe: “Tenho fé”.