Voluntários no Porto: "Nacionalidade, cor, não interessa. O importante é estar ali”
Voluntários que apoiam sem-abrigo nas ruas da cidade não desistem da missão, apesar do crescente sentimento de insegurança. Ações contam com reforço de policiamento.
Corpo do artigo
É início de noite num dia de verão. Por isso, às 20.30 horas ainda raia o sol e apenas corre uma leve brisa. O grupo dos Anjos Amigos reúne-se no viaduto da Rua de Gonçalo Cristóvão, no Porto. Estão munidos de sacos tróleis repletos de kits de comida, água, bolos, pão, fruta - combustível para o corpo de quem tem fome. Vão percorrer a Rua de Gonçalo Cristóvão, descem até à Avenida dos Aliados, cortam até Santa Catarina e vão desaguar à Batalha. Nos pés calçam sapatilhas e vestem alegria e boa disposição para distribuir pelos sem-abrigo, além da comida.
Na primeira paragem, encontram Laura em dia especial. Laura conta 63 primaveras e o grupo de seis elementos canta os "parabéns" e prolonga a visita com um longo abraço. Laura, cubana, há mais de dez anos na cidade do Porto, descansa nos degraus de uma loja de decoração. Ao lado, aglomeram-se os seus pertences tapados por um longo lençol branco: uma mala, uns cobertores, umas caixas.
Mas, à sombra da beleza luminosa de um fim de dia de verão, cresce uma realidade dura e invisível - a das centenas de pessoas em situação de sem-abrigo, que enfrentam não só a exclusão social e económica como também uma cidade que dizem estar cada vez mais insegura.
"Apontaram-me uma faca"
Natural de Rio Tinto, mas há anos a viver nas ruas do Porto, Vítor Silva, de 63 anos, fala com calma e resignação. Conta que ficou sem teto depois de ultrapassar o prazo nos Albergues do Porto. "Tenho família, mas é complicado", desabafa. Vive do apoio de associações como os Anjos Amigos e de refeições nos centros sociais. "Só me ajudam com o almoço e jantar... o resto, nada", diz. Apesar da instabilidade, não relata episódios de violência direta, mas reconhece que "há zonas perigosas, como o Campo de 24 de Agosto". "Estar na rua é a maior dificuldade", relata.
O próprio Vítor reconhece que há um aumento de imigrantes nas ruas, mas evita generalizações: "Alguns ajudam, outros não comunicam connosco". Já Laura, com formação em saúde veterinária, sonha em abrir um pequeno espaço de serviços para animais. Por enquanto, vive à espera, numa condição de limbo, e depende da boa vontade de quem encontra.
Outros, como um jovem catalão de 31 anos, contam histórias mais sombrias. Assume-se alcoólico, com histórico de trabalho em vários países, fala da rua como "um lugar onde se sobrevive com a ajuda dos turistas". Sobre segurança, é perentório: "De noite, não me sinto seguro". Já presenciou espancamentos e insinua que certos grupos organizados, como "máfias indianas", operam à margem da lei.
Cristiana Teixeira, de 55 anos, fundou os Anjos Amigos há nove anos. Comercial na área da decoração, decidiu agir quando percebeu que os projetos que observava não davam aos sem-abrigo o que considera o mínimo: "dignidade". "Queria que eles tivessem aquilo que todos nós temos -- médico, comida caseira, cabeleireiro", partilha.
Carla é luz na noite que vai caindo na cidade. É alegria e gentileza para todas as pessoas vulneráveis que encontra. Distribui kits de comida, roupa, mas também sorrisos e simpatia. Às terças e quintas-feiras, saem à rua com kits preparados com cuidado. Porém, os tempos mudaram: "O Porto está muito esquisito, há olhares estranhos. Já me apontaram uma faca. A segurança acabou".
Atualmente, contam com apoio da Polícia Municipal à quinta-feira, quando chegam a ajudar mais de 130 pessoas numa só noite, no Largo do Dr. Tito Fontes. "Só assim conseguimos continuar com alguma segurança", reforça.
Augusto Silva, de 50 anos, é voluntário nos Anjos Amigos desde 2019. Conhece bem a diferença entre as ações de terça e quinta: "À terça, ajudamos mais os sem-abrigo. À quinta, vêm também famílias carenciadas". Arregaça as mangas "sem medo e sem preconceito".
Sobre os recentes episódios de agressividade contra o trabalho de voluntários nas ruas do Porto, Augusto mostra-se sereno: "Nunca pensei em desistir". "Não escolhemos quem ajudamos. Nacionalidade, cor, não interessa. O importante é estar ali", insiste.
Presença de polícias ajuda
Num outro cenário com projeto social diferente conhecemos Madalena Martins, de 30 anos. É assistente social na Igreja Nossa Senhora da Conceição, na Praça do Marquês de Pombal, e mostra ao JN a azáfama na cozinha, onde funciona o projeto da igreja, Porta Solidária. Aqui trabalham meia dúzia de voluntários, rodeados por panelas gigantes que alimentam diariamente 400 pessoas.
Neste caso, as portas da sala que pertence à igreja abrem de domingo a sexta-feira para receber pessoas carenciadas, como se fosse um restaurante.
Apesar de alguns momentos de tensão e conflito, o ambiente no centro social permanece tranquilo e seguro, com o apoio constante da Polícia Municipal. A presença das autoridades, segundo Madalena, ajuda a garantir a normalidade do trabalho e a resolver eventuais conflitos.
"Não sentimos insegurança. O que acontece é que a nossa população está muito vulnerável e, às vezes, isso leva a alguns desentendimentos. Mas nada que afete o funcionamento normal".
Imigrantes não são problema
Já nas ruas, as redes de solidariedade podem funcionar sob tensão: "Não são todos maus [os imigrantes], há bons e maus em todo o lado", avança a fundadora dos Anjos Amigos, Cristiana Teixeira. Contudo, "a verdade é que muitos vêm para cá fazer o mal", confessa. Acrescentando que já interveio em situações violentas, descreve um Porto onde "já não se anda descansado". Apesar de tudo, as associações persistem - alimentam, cuidam, ouvem.
O padre Rubens, presidente da Porta Solidária, refere que a crescente imigração, aliada ao aumento da pobreza, coloca à prova os sistemas de apoio social. "Está-se a criar esse mito de que a insegurança em Portugal tem a ver com os imigrantes, e não tem. Temos várias experiências, aqui na Porta Solidária, da presença de imigrantes que nunca nos causaram qualquer problema", conta.
"Talvez haja alguma agressividade entre eles [imigrantes], mas percebemos, por notícias, que não são a causa da insegurança em Portugal", realça o padre Rubens. E remata: "A questão que se coloca é, de facto, uma imigração controlada, bem legislada".
A população que recorre aos serviços da Porta Solidária é diversa. Além de pessoas em situação de sem-abrigo, o centro de apoio também atende famílias, idosos com pensões baixas e, até, trabalhadores que, após pagarem a renda e outras despesas, ficam com pouco ou nenhum recurso para se alimentar.
"Às vezes, quem recebe o salário mínimo não consegue sequer pagar a renda de um T0 aqui no Porto. O preço das rendas subiu imenso e, infelizmente, a alimentação acaba por ser uma despesa sacrificada", explica Madalena Martins.
Entre os beneficiários, a maioria é composta por homens (cerca de 85%), mas também há famílias com crianças que vêm ao centro para recolher as refeições e levá-las para casa. Com a crescente diversidade do público, surgem também desafios.
Em especial, a chegada de imigrantes de países como o Norte de África e América do Sul gerou novas dinâmicas na distribuição de alimentos. Por exemplo, muitos imigrantes seguem dietas que excluem carne de porco, o que exigiu uma adaptação nas refeições oferecidas. "Tivemos de criar pratos específicos e refeições vegetarianas, para dar uma resposta respeitosa às suas necessidades alimentares", assinala a assistente social.
Associações pedem mais apoios à Câmara
A Associação Porta Solidária, juntamente com outras instituições que prestam apoio a pessoas em situação de sem-abrigo, apelou recentemente a um maior compromisso por parte das autoridades municipais. Numa carta aberta dirigida aos candidatos à Câmara Municipal do Porto, 16 instituições pedem mais apoio em termos de alojamento, políticas de integração social e uma resposta mais eficaz para as necessidades da população vulnerável.
Mais de 160 pessoas
Mais de 160 pessoas recebem apoio semanal do grupo Anjos Amigos. Os voluntários precisam de proteção policial para distribuir alimentos.
Mais estrangeiros
Cerca de 90% das pessoas ajudadas pelo grupo Anjos Amigos atualmente são de nacionalidade portuguesa. A associação Porta Solidária indica que desde 2023 tem crescido o número de estrangeiros que pedem apoio.
Refeições diárias
A associação Porta Solidária serve cerca de 400 refeições por dia na cidade do Porto aos mais carenciados.