Hospedeira de bordo vai representar Portugal no concurso Miss Universo, em El Salvador, em novembro. Ao JN diz ser "um sonho realizado" dez anos após concluir o processo de transição da sua identidade de género.
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A 5 de outubro, Marina Machete fez história ao tornar-se a primeira mulher transexual a ser coroada Miss Universo Portugal. Mudados os regulamentos, a hospedeira de bordo de 28 anos realizou um sonho e conquistou o passaporte para representar Portugal a 18 de novembro, em El Salvador. Uma década após ter concluído o processo de transição e mudado legalmente a sua identidade de género. Em entrevista ao JN, Marina Machete garante que a experiência a tornou mais forte para esclarecer uma sociedade pouco aberta à disforia de género.
A dias de partir para o concurso Miss Universo, em El Salvador, como se sente?
Sinto vontade que esse momento chegue rápido. Foi uma preparação ao longo de vários anos de algo que eu pensava ser uma ilusão, mas que se tornou realidade. Eu estava muito no limite de idade para os regulamentos anteriores do Miss Universo, os 28 anos, ainda podia competir mais um ano e este era para me preparar, porque nunca tinha participado num concurso de beleza. Só os via e era fã, mas acabou por ser o meu ano.
Inscreveu-se como mulher trans?
Inscrevi-me sem falar da minha história. Fui ao Miss Lisboa, uns meses antes do Miss Universo Portugal, ainda sem a organização saber. Portanto, eu fui nomeada finalista sem contar que era trans.
Qual foi a reação quando contou?
Não houve um momento em que contei. Houve uma ficha técnica que tive que preencher, e foi nesse momento que transmiti à organização que eu era a Marina, mas também uma mulher trans.
Então, nunca sentiu que foi beneficiada…
Pelo contrário, acho que, se é concurso de beleza, eu até seria a pessoa com menos vantagem física contra mulheres biológicas, se fosse esse o caso.
Como encara a polémica que se instalou após a sua coroação?
Sinto que tudo o que passei, ao longo da vida, preparou-me para este momento. Quando fui coroada, estava a pensar no Miss Universo. Não estava a pensar nos comentários ou na opinião das pessoas, porque pensei que iria sair uma notícia muito pequena, que as pessoas iam simplesmente dizer que a Miss Universo Portugal é transexual, mas seria uma coisa normal. Honestamente, pensava que, no nosso país, as mentalidades já estavam um bocadinho mais ajustadas àquilo que é a realidade ao nível mundial.
Portugal ainda tem muito que evoluir?
Acredito que sim, e espero que isto seja algo que leve as pessoas a pensarem e a conversarem, aos poucos e poucos, para desmistificar um bocadinho o que é nascer com disforia de género.
Trabalha como assistente de bordo e também é modelo…
Fiz alguns trabalhos, mas a minha carreira como modelo nunca lançou, porque, na altura, em 2013, quando tinha 18 anos, ser transexual era algo que ainda não era aceite. No mundo da moda era algo visto de lado, principalmente quando eu entrava como mulher cis e depois revelava ser uma mulher trans. As pessoas não sabiam onde encaixar…
“Tinha que esconder as Barbies”
Como foi parar à profissão de assistente de bordo?
Fui para a faculdade [estudar Turismo] e houve alguém do meu secundário que contou a toda a gente que eu era trans. Eu, como tinha 20 anos, ainda não conseguia lidar com o facto de já ser adulta, de ter saído do bullying do secundário, e ter que levar ainda com a rejeição das pessoas. Acabei por me vir embora e não acabei a faculdade, e fiquei um bocadinho perdida. Voltei a trabalhar em lojas de roupa, em restauração, e depois percebi que, para a minha independência financeira, precisava de tomar rédeas de uma profissão que fosse mais segura e que me desse mais conforto.
A partir de que momento é que sofreu bullying?
Sempre estudei em Setúbal e, desde pequena, era rejeitada pelos rapazes e sempre me interessei pelas raparigas, mas chegou a à altura da adolescência em que eu era rejeitada tanto de um lado, como do outro. Foi aí que comecei a perceber que era diferente. Já sabia desde os quatro anos e, na escola, a pressão social fez com que eu me apercebesse que essa rejeição era real e que estava a acontecer.
Como percebeu aos quatro anos que era diferente?
Acho que tinha a ver com a forma como me tratavam. Eu sabia que tratavam as meninas de uma forma e os meninos de outra, e eu queria ser tratada como uma menina, com carinho e amor, e não com aquela força com que se trata os rapazes. Ao longo dos anos, era óbvio onde eu me encaixava.
Sentia-se desenquadrada com algumas brincadeiras?
Sim, principalmente com os brinquedos com que tinha que brincar. Essa era a parte pior, tinha que esconder as Barbies quando ouvia o carro do meu pai chegar e tirava os Action Men.
Quem é que lhe dava as Barbies?
A minha mãe [risos].
Como reagiu a sua família aos primeiros sinais e depois à sua determinação em ser mulher?
Foi aos poucos e poucos, eu não tive coragem de contar à minha mãe diretamente. Teve que ser uma vizinha a contar à minha mãe e foi difícil aos 13 anos explicar-lhe que eu me sentia uma mulher. Foi complicado, mas os meus pais perceberam que a disforia de género é algo natural, que havia uma equipa multidisciplinar de médicos a acompanhar-me. Portanto, não era algo que vinha da minha cabeça, era algo que tinha nascido comigo.
“Comecei por automedicar-me”
Começou a ser acompanhada por uma equipa multidisciplinar já com o apoio da família ou procurou ajuda sozinha?
Eu procurei ajuda sozinha, porque aos 10 anos pesquisei pela primeira vez o que eu sentia. Tive que pedir ajuda, a psicóloga da escola ajudou-me bastante. Ela também era uma pessoa da comunidade e percebeu o bullying que eu passava. Foi complicado fazer essa ligação, mas assim que começou o processo foi tudo bastante rápido para sair da escola e já ir para o centro de saúde, e depois, eventualmente, para o hospital.
Podemos saber como tudo se iniciou?
Eu comecei por automedicar-me, porque o processo levou bastante tempo. É algo de que me arrependo hoje em dia, porque é muito perigoso, e não quero que ninguém se automedique. Mas teve que ser pela minha saúde mental e pela minha ansiedade de transicionar. Só quem está nessa posição é que sabe o que é sentir o corpo a evoluir na adolescência e não conseguir parar essas mudanças.
Quando é que passou a ter acompanhamento médico?
Comecei a automedicar-me aos 15 anos e aos 16 já tive o acompanhamento especializado, com autorização dos meus pais também. Foi aos 18 anos que comecei o processo cirúrgico e foi nessa altura que terminei tudo.
Foi também quando obteve o cartão de cidadão como Marina?
Foi um dia depois de fazer 18 anos que fui tentar e consegui logo no dia a seguir, a 2 de outubro de 2013.
O facto de ter crescido num meio pequeno tornou tudo mais complicado?
Acho que, acima de tudo, influenciou a forma como as pessoas reagiam à minha realidade e à minha existência lá. Eu nem sequer vivia em Palmela, vivia em Aires, e as pessoas não estavam habituadas a ver pessoas diferentes e isso foi o que causou estranheza no início.
É mais fácil viver em Lisboa?
Acaba por se mais fácil não só para o trabalho, mas também em termos de abertura de mentalidade.
“Ser mãe é um desejo”
Já se assumia antes de iniciar a transição?
Desde os 13 que já vivia autenticamente, já passava como menina fora da escola.Felizmente, a puberdade masculina nunca se desenvolveu de uma forma que eu ficasse masculinizada. Portanto, mesmo antes dessas hormonas iniciais, eu vivia e passava como rapariga fora da escola, dentro da escola já era mais complicado.
Quando passou a ser definitivamente Marina, as paixões passaram a ser mais fáceis?
Sim, primeiro tinha que ganhar autoconfiança e perceber que as pessoas viam-me como Marina e que tinha que estar aberta ao amor, e deixar que tudo fluísse naturalmente.
Namora?
Neste momento, não.
Ser mãe é um desejo?
Ser mãe é um desejo já de há vários anos e espero cumpri-lo em breve.
Alguma vez questionou o motivo de ter nascido assim?
Muitas vezes tentei perceber qual era a razão, porque me tinha acontecido a mim, porque tinha sido eu a nascer assim e não outra pessoa qualquer. Mas esse tipo de pensamento só tira o foco ao objetivo que é ser feliz!
“Quase invencível”
Não a incomoda ser tratada como Miss Portugal Trans?
Não, porque essa é a minha realidade e acho que é positivo o tipo de representatividade que o facto de eu ter sido coroada e ser uma mulher trans tem.
Diz que já foi insegura, mas acabou por conquistar ainda o título de mais confiante… A experiência de vida tornou-a mais forte?
Sem dúvida, se tivesse nascido uma mulher cis não tinha a personalidade, nem a força que tenho hoje, para lidar com certas coisas na minha vida e que muitas pessoas podem ver como sendo negativas. Este processo preparou-me para ser quase invencível.
Após o Miss Universo, o que se seguirá?
No próximo ano de reinado tenho muitos projetos em mente, que podem mudar a forma como as pessoas veem as pessoas trans e dar a conhecer a realidade trans. Não há problema nenhum nas pessoas serem autênticas e viverem uma vida feliz.
É a terceira mulher trans no Miss Universo e, este ano, não é a única em competição. Isso aumenta a responsabilidade?
Acima de tudo, estou entusiasmada. Já falei com a Rikkie (Kollé, a representante dos Países Baixos) e vai ser uma experiência única, porque não vamos ter que viver isto sozinhas, como a Angela (Ponce) viveu em 2018. Vamos ter o apoio uma da outra e também vai ser o primeiro ano com mais diversidade de sempre, com três mulheres casadas e duas com filhos.
Isso é a prova que é mais do que um concurso de beleza?
Acho que é a maior prova que este concurso não se resume apenas à aparência das candidatas, que há muito mais por detrás, que a mensagem que levamos e as causas que defendemos são a nossa imagem de marca.