O emprego e o desemprego, a pobreza que leva cada vez mais gente a pedir ajuda e a situação difícil que se vive na Região Norte foram o mote da reflexão de Carvalho da Silva, secretário-geral da CGTP, e Dom Manuel Clemente, Bispo do Porto.
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José Leite Pereira - Estamos num terreno minado, mas muita gente ainda não tomou consciência da gravidade da crise. O que teremos de mudar e de fazer para não cometermos os mesmos erros?
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D. Manuel Clemente - É um quadro complexo e grave, não só em relação ao presente e à subsistência, mas também em relação ao futuro e às vidas das novas gerações e das pessoas de meia-idade que foram apanhadas pelo desemprego. Só agora se vai reparando porque subsistem redes de apoio familiar. Podia ser muito mais grave se as pessoas ficassem completamente desamparadas e isoladas. A igreja Católica, no Porto, tem uma rede muito capilar, com 477 paróquias. E nessas frentes é que todos os dias, e de uma maneira crescente, surgem apelos que têm a ver com a subsistência. Mas a consciência é crescente porque não estamos perante uma situação meramente conjuntural, mas estrutural. Ou seja, houve um modelo de economia, de sociedade, de empresa, vida colectiva e profissional que encontrou muitas dificuldades para se manter. E isto leva-nos a instituições que, além da resposta imediata, procuram trazer uma mensagem humanista e que corresponda à pessoa humana e à sua dignidade, para não se repetirem no futuro os erros do passado.
JLP - Alguns destes problemas começam por ser encarados com uma atitude de cidadania, e isto falhou durante algum tempo.
Manuel Carvalho da Silva - Falhou e está a falhar porque o modelo de sociedade não apela nesse sentido. Quando olhamos para o trabalho, e as relações de trabalho, temos de ver as dimensões económicas, sociais, culturais e políticas. Submeter as relações de trabalho meramente aos paradigmas da economia e aos seus indicadores é uma subversão que leva à distorção da sociedade. No Norte, a situação é um pouco pior em termos médios, do que em relação a Portugal no seu todo. O fundamentalismo financeiro e económico e a utilização da especulação para o enriquecimento são a referência e uma indução de valores subvertidos. Não foram as pessoas que se tornaram mais individualistas, é um individualismo institucionalizado. Que se cruza com outros factores preocupantes, como o consumo, uma das maiores asneiras do passado, apresentado como sinónimo de modernidade. O Norte era a região mais jovem do país, e a juventude está colocada com emprego precário e baixa retribuição. Quando o país secundariza ou até ataca o sector produtivo e desvaloriza o trabalho, cria desigualdade, injustiça, carência, e até comportamentos desviantes. Este é um dos aspectos a reter em relação à Região Norte e que merecia ser estudado.
JLP - Concorda com os caminhos que foram apontados por Carvalho da Silva, como sendo bons para o desenvolvimento mas que se revelaram errados?
D.MC - Sim, tem a ver com a educação, pedagogia social. Nós nascemos dependentes. A sociabilidade implica valores assumidos não apenas por dependência mas porque percebemos que não podemos viver uns sem os outros e se não for uns para os outros. E a educação para a sociabilidade deve ser prioritária, a educação humana, do ser que nos deve definir. Mas isto também se aprende em organizações, nas escolas, nas famílias, em tudo aquilo que aproxima as pessoas, do gosto de estar com os outros e para os outros, o gosto da vida. Grande parte da minha actividade é passada nas comunidades, onde encontro uma vontade, uma criatividade em diversos sectores, ao qual as pessoas dedicam grande parte do seu tempo livre. Esta é a base da educação para a sociabilidade. E depois reflecte-se nos campos económico e empresarial.
MCS- Concordo, essa capilaridade que existe no Norte é visível logo ao nível da família, da propriedade, do funcionamento das comunidades. Mas impõe-se sermos desafiadores numa perspectiva de futuro. Olhando para os últimos 10 anos, houve crescimento económico, mas a riqueza distribuiu-se de forma desigual, tornando-se uma das principais causas dos problemas de hoje. E a continuação desta crise assenta em três factores: os resultados económicos na actividade produtiva não são reinvestidos, a precariedade no trabalho tornou-se a primeira causa do desemprego, e há diminuição da retribuição do trabalho. Além disto, concordo com D. Manuel quanto à questão do tempo e do objectivo da participação. Estamos desfocados na base da nossa vivência. Temos de introduzir um confronto ideológico para encontrarmos caminhos e um desafio da participação, chamando as pessoas à responsabilização.
JLP - O discurso da defesa destes valores podia ser feito pela Igreja.
D.MC - Pode, e é a isso que Bento XVI chama uma nova síntese humanista, que é absolutamente requerida. Quando consideramos a Humanidade, genericamente, estamos a considerar pessoas, com tudo o que elas têm de concreto e de relacional. E, infelizmente, temos andado entre massificações e individualizações. E nenhuma destas afirmações contempla a pessoa naquilo que ela é como ser relacional. Não é apenas aquele que presta um serviço no sentido mais mecânico e imediato do termo; é uma pessoa, que tem relações, conexões de terra, de família, de libertação do tempo para que se possa encontrar de certa maneira fora de si própria e acima de si. Tudo isto precisa de ser contemplado numa sociedade que queira ser humanista e humanizadora. Para tal é preciso haver tempo e perceber que este tempo não é dinheiro, é a pessoa, na sua liberdade e a sua criatividade que depois também gerará uma riqueza mais completa em termos de desenvolvimento e não de simples crescimento.
JLP - A uma semana da greve geral, concordam com o título do "Jornal de Negócios" de hoje que questiona "porque tantos apoiam e tão poucos querem aderir", e que traduz o momento presente?
D.MC - Com a precariedade do trabalho as pessoas pensam muito. Não é só o ordenado desse dia, mas também por causa da sua situação. E, no entanto, temos de considerar que uma greve convocada pelas duas grandes centrais sindicais e a que aderem outros sindicatos também, representa uma porção populacional muito importante e não se pode secundarizar. Gostaria que esta finalidade activada pela greve convocada seja uma finalidade de todos. Porque, como já aqui dissemos, no mundo social e empresarial há muita gente preocupada e que, no conjunto, resolverá a situação.
JLP - A greve pode ser o marco para um início de diálogo?
D.MC - Oxalá seja, não o início, porque já começou há muito tempo, mas que seja mais um patamar. Isso é o desejável.
MCS - É preciso olhar o presente com sentido de responsabilidade numa perspectiva de futuro. Em Portugal, está a assistir-se a um corte de direitos em nome de uma crise que não é suficientemente exposta e, acima de tudo, não são apresentadas medidas equilibradas para garantir o futuro. E quem se sente injustiçado pode mostrar a sua indignação e o seu protesto.