<p>Trinta e cinco anos após a "Revolução dos Cravos", Salazar "volta a dominar o imaginário dos portugueses".</p>
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Mais de um século depois do nascimento de Salazar, investigadores defendem que a desilusão com a democracia justifica um certo saudosismo entre alguns sectores da sociedade: para uns a explicação está na crise, para outros é um fenómeno comum no pós-ditadura.
António de Oliveira Salazar nasceu há 120 anos no Vimieiro, Santa Comba Dão, localidade cujo presidente da câmara inaugurou este fim-de-semana, em plena comemoração do dia 25 de Abril, um largo com o nome do ditador.
Trinta e cinco anos após a "Revolução dos Cravos", o jornalista Fernando Dacosta, autor do livro "As Máscaras do Salazar", acredita que actualmente Salazar "volta a dominar o imaginário dos portugueses".
"Hoje, instalou-se uma insegurança muito grande, a nível de empregos, nas ruas, o que faz crispar as pessoas. A democracia não deu resposta capaz àquilo que se ambicionava que ela iria trazer, e faz parte da natureza humana: as pessoas voltam-se então para um passado recente, onde dominava a segurança", argumenta o especialista, em declarações à Lusa.
Para Fernando Dacosta, o antigo ditador "entendeu aquilo que é elementar - que as pessoas, entre a liberdade e a segurança, preferem a segurança, até porque sem segurança a liberdade de pouco vale".
O jornalista, que privou com o ditador, observa ainda um fenómeno recente: os jovens têm um interesse crescente sobre a personalidade de Salazar.
"Em casa ouvem falar o pior ou o melhor possível, mas querem ouvir algo mais neutral, querem compreender o que se passou, se afinal era um facínora ou um indivíduo nobre", comenta Dacosta.
O interesse de Salazar reside no facto de ter sido o político que deteve o poder durante mais tempo na história de Portugal, defende o jornalista.
"Como é que aquele homem conseguiu que isso acontecesse?", é a pergunta que impera.
A investigadora Helena Matos, autora da obra "Salazar", em dois volumes, responde: "Ninguém governa tantos anos um país sem conhecer profundamente o povo".
Características como a "cunha" ou a cumplicidade, ou a lógica do "se eu não disser nada não vou ter problemas" justificam que o regime ditatorial perdurasse durante 40 anos e "são os mesmos defeitos e as mesmas idiossincrasias que permitem hoje muitos dos problemas mais profundos com que o país se debate", considera.
Uma parte da população, sobretudo as pessoas com mais de 55 anos, partilha alguma "mistificação em relação ao passado", mas este é um "fenómeno perfeitamente comum nas sociedades pós-autoritárias", defende o professor universitário Manuel Loff.
Este fenómeno não se deve à crise, mas "às grandes desigualdades" existentes na sociedade, emergindo por isso entre os sectores mais desfavorecidos, nomeadamente entre os idosos, afectados pela pobreza e que sentem que "a democracia não resolveu os graves problemas do país", refere o autor do livro "O Nosso Mundo É Fascista! - O Mundo visto por Salazar e Franco".
Mas, sublinha o investigador, os estudos de opinião indicam que "a grande maioria da população não se sente identificada com o salazarismo, por mais crítica que seja com a realidade do momento".
Na opinião de Fernando Rosas, director do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa, as pessoas, geralmente as mais velhas, tendem a mitificar o passado, "perante as dificuldades da vida de hoje, que são muito grandes" e as "desgraças das políticas deste governo".
A solução passa por uma "pedagogia plural, que cabe à sociedade, ao Estado, à escola, à História", defende o também deputado do Bloco de Esquerda.
"Para nós, o passado está associado a Salazar. Noutros povos, está associado a outras pessoas. Em Portugal existe sempre um sentimento de nostalgia, de perda, e agora coincide com essas décadas, mas dentro de uns anos coincidirá com outras", sublinha, por seu turno, Helena Matos.
A investigadora exemplifica com um paradoxo: "as pessoas dizem no trânsito que fazia cá falta o Salazar, sendo certo que ele nunca tirou a carta e não sabia conduzir".
A jornalista aponta: "a democracia não tem sabido explicar que não é uma coisa adquirida, não existe a ideia de que não é um regime perfeito".
"As democracias são regimes difícieis, que exigem muito das pessoas. Daí que muitas vezes exista essa ideia que de o passado não era assim, mas antes tínhamos um regime que não convidada à participação das pessoas, agora têm mesmo de participar, sejam ou não convidadas pelas elites", salienta Helena Matos.
Os quase 50 anos de ditadura deixaram marcas profundas que ainda hoje perduram a nível social, económico e mental, sustentam os especialistas contactados pela Lusa.
O regime salazarista "representou o ponto de vista retrógrado, conservador, reaccionário, que é responsável por gravíssimos atrasos no desenvolvimento económico, social e democrático, no bloqueamento e na negação da democracia, e essa é uma pesadíssima herança que em parte ainda estamos hoje a pagar", disse Fernando Rosas.
"Somos marcados por isso. A nossa entrada na Europa foi adiada durante muitos anos, as características da nossa indústria, protegida corporativamente e pelo condicionamento industrial, assente nos monopólios e nos privilégios de uma elite e de uma oligarqia que dominava o regime e o Estado, uma agricultura atrasada", são exemplos das marcas do Estado Novo.
Salazar tentou uma coligação entre os interesses do Estado e dos grandes grupos económicos, um padrão que Manuel Loff reencontra "em grande parte no cavaquismo e, agora, no socratismo".
"Os mesmos grupos sociais dominam permanentemente, a todos os níveis", outra das heranças da ditadura, na opinião do especialista, que aponta também que permanece até hoje uma "reverência perante o poder, mas ao mesmo tempo um profundo desprezo aparente pelos políticos".