Crónica abreviada de uma revolta que avançou porque já não tinha outro caminho por onde seguir, rumando ao fracasso que poderia ser êxito, fosse diferente o acaso.
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Pouco passa das duas e meia, está a cidade imersa na cerração. Através do espesso nevoeiro, chega aos ossos um frio atlântico, portuense. De rachar. Está o plano pronto para entrar em marcha, mas não marcha como planeado. É dia de republicanizar Portugal.
Estamos a 31 de Janeiro, já lá vão 119 anos. É tempo de mais uma revolta, tantas outras se fizeram na cidade. Deviam sair primeiro os de Infantaria 10, outros tomaram a dianteira. Um sargento, Abílio de Jesus, lança o grito "Viva a República!". E a ideia de República ganha vida. Mesmo que por poucas horas.
Foi de ideais e determinação essa madrugada de 1891. Ao contrário do previsto, foram os militares de Caçadores 9, aquartelados no mosteiro de S. Bento da Vitória, os primeiros a sair para a rua. É conhecido o episódio entre o sargento Abílio e o coronel Malheiro, que recusou tomar parte. Ao contrário do outro Malheiro que ficou na História, alferes este, de guarda à cadeia da Relação, de onde saiu para comandar as tropas rumo ao Campo da Regeneração (antes de Santo Ovídio), onde se concentrariam para as posteriores manobras e às quais se juntariam, finalmente, Infantaria 10 e homens da Guarda Fiscal.
A revolta era mais do que anunciada. Ali, na actual Praça da República, juntava-se povo desejoso de ver ou participar, lá estavam os repórteres e cronistas do tempo, sabendo da importância do momento. Mas por ali houve, também, um primeiro sinal de fracasso, com a não adesão ao movimento das tropas de Infantaria 18, contrariamente ao destacamento de Cavalaria 6, estabelecido nas traseiras do quartel.
Ali foi o comando dos revoltosos assumido pelo capitão Leitão. Segundo os cronistas da época, a cisão no seio da guarnição portuense, revoltosos de um lado e lealistas do outro, deveu-se, em boa parte, à ausência de oficiais, além dos três, de baixa patente, que participaram, somando-se o tenente Coelho ao capitão Leitão e ao alferes Malheiro. Não havia, para estes, como para os conspiradores civis, retrocesso possível.
Não cabe aqui o relato pormenorizado do que sucedeu, apenas breves pinceladas de uma história tantas vezes contada. Da forma como os revoltosos desceram a Rua do Almada, com a banda a entoar "A Portuguesa" e a população a aderir com entusiasmo, alternando os vivas à República com os gritos patrióticos, tão em voga desde o famigerado ultimatum inglês, um ano antes. Havia então, ainda, a esperança de que as tropas do 18 se juntassem às restantes, já na Praça de D. Pedro, sob o comando do coronel Lencastre de Menezes. Tal nunca aconteceu.
Pouco depois das seis da manhã, estava o edifício dos Paços do Concelho ocupado pelos revoltosos, que iam assomando às janelas. Alves da Veiga proclamou a República e discursou, sob efusivos aplausos de uma multidão que dificilmente o ouviria. Ele mesmo rabiscara dos dois lados de um sobrescrito os nomes daqueles que formariam o Governo Provisório. Ia lê-los quando o actor Miguel Verdial tomou a iniciativa de o fazer, usando o poderoso timbre profissional: Rodrigues de Freitas; Joaquim Bernardo Soares; José Maria Correia da Silva; Joaquim Azevedo Albuquerque; José Ventura dos Santos Reis; Licínio Pinto Leite; António Joaquim de Morais Caldas; Alves da Veiga.
Subir a Rua de Santo António era o passo seguinte, pois na zona da Batalha estavam dois pontos estratégicos que urgia ocupar: o telégrafo, de onde seria espalhada pelo país a palavra revolucionária, e o quartel-general. Já se sabia, então, que a Guarda Municipal assumira posições junto à igreja de Santo Ildefonso, mas isso não impediu o capitão Leitão, confiante de que não abririam fogo, a ordenar o avanço.
Depois, o trágico desfecho. Um pouco adiante da meia subida, militares e civis misturados encaixaram os primeiros disparos da Municipal. Soldados tentaram ripostar, diminuídos pela orografia e pela surpresa, a população fugiu em pânico. Foi nos Paços do Concelho que os revoltosos encontraram refúgio, mas tiros de artilharia levaram à rendição.